Chegou esta semana às salas portuguesas 'Lore', que garantidamente será um dos melhores filmes que vamos ver este ano. O texto que se segue foi originalmente publicado na edição de 22 de junho do DN com o título 'A viagem de cinco irmãos pela Alemanha derrotada'.
Dos vencidos poucas vezes reza o filme de guerra. E sobre a II Guerra Mundial, a que maior representação teve na história do cinema (de ficção e documental), habituámo-nos a ver sobretudo narrativas pelo ponto de vista dos vencedores. Quer quando celebram os seus feitos militares quer mesmo quando olham os vencidos na etapa em que os ventos de guerra ainda corriam em seu favor. Lore, da realizadora australiana Cate Shortland, procura outro olhar. E através de cinco irmãos, abandonados pelos pais (certamente próximos da alta hierarquia nazi e que imaginamos capturados pelos aliados), acompanhamos os dias que se seguem à morte de Hitler e da capitulação da Alemanha. Caminham, a pé, rumo a uma distante casa de família. Sem pais, sem casa, sem comida, sem poder, sem prioridade, sem conforto, traduzindo afinal o peso do fardo de quem foi derrotado.
Baseado em The Dark Room, de Rachel Seiffert (escritora nascida em Oxford, mas com ascendência austríaca e alemã), Lore é não só um feito de realização, como vinca esse ponto de vista alemão poucas vezes visitado pelo cinema. Lore (interpretada por Saskia Rosendahl) é a irmã mais velha, adolescente. Com ela segue uma outra irmã ligeiramente mais nova, dois gémeos ainda crianças e Peter, um bebé de meses. Caminham por 900 quilómetros, passando pela Floresta Negra, encontrando um rapaz que se diz judeu, descobrindo em aldeias por onde passam fotografias de prisioneiros e de corpos amontoados. Há quem acredite nessas fotografias que Lore descobre. Mas também quem as diga fabricadas pelos aliados.
Lore vive essencialmente ao ar livre, a paisagem sendo mais uma sucessão de obstáculos que um cenário por onde a caminhada dos irmãos avança. A guerra acabou. Os soldados cruzam-se com eles ocasionalmente. Mas o medo, a desorientação, são companhia permanente. Tal como a dúvida sobre o que de facto se passou. E que, afinal, fazia o pai...
Cate Shortland filma os irmãos, a floresta, a lama, a sujidade. A câmara olha tudo de perto, a música de Max Richter (o mesmo autor da “re-composição” das Quatro Estações de Vivaldi) acrescentando uma dimensão onírica que dialoga com as imagens mas sem abafar o fulgor implosivo da viagem de dor e solidão daqueles irmãos que nada podem fazer perante um mundo em que a ordem que até ali conheciam desapareceu.