domingo, junho 09, 2013

O povo televisivo

RENÉ MAGRITTE
A Sala de Escuta
1958
Os discursos dominantes da televisão oscilam entre o catastrofismo e a celebração de uma felicidade obrigatoriamente colectiva. É caso para recuperar um velho refrão militante: o povo é que paga — este texto foi publicado no Diário de Notícias (7 Junho), com o título 'Onde é que está o povo?'.

Com a aproximação do Verão, multiplicam-se os sinais de celebração popular. Desde os programas matinais até aos espectáculos em directo, passando pelas reportagens de alguns noticiários, perpassa pelas televisões a sensação eufórica de que somos um país em festa, exaltando um património popular em que todos se reconhecem. A identificação deste estado de coisas justifica um momento de pausa e reflexão. Porquê? Porque importa observar como o imaginário televisivo vive dominado por uma espectacular esquizofrenia.
Assim, por um lado, notícias, comentários e debates garantem-nos que estamos para lá do apocalipse, habitando uma crise que vai reduzir a pó a nossa identidade de séculos. Chegou-se mesmo a um ponto em que pronunciar a palavra “crise” se transformou num efeito compulsivo de retórica ideológica: mesmo quem não tenha nada para dizer, se disser “crise” a televisão garante-lhe dignidade discursiva.
Por outro lado, coabitando serenamente com este caos, o mesmo imaginário televisivo garante-nos que somos um povo de saudáveis e inamovíveis hábitos festivos: desde que haja um acordeão aos berros ou algum fumo de sardinhas assadas, podemos ter a certeza de que a nossa querida “portugalidade” não vacilará.
As notícias são falsas? Os arraiais não estão a acontecer? Nada disso. Aliás, já somos todos crescidos para compreender que a discussão séria das práticas jornalísticas está longe de se esgotar na dicotomia verdade/mentira (cujo necessidade básica não será necessário sublinhar). Acontece que este discurso de celebração a qualquer preço relança uma outra palavra. É a palavra “povo”. Na prática, a nossa existência como povo parece esgotar-se num misto de caricaturas e detalhes pitorescos que já cheiravam a mofo na época de Vasco Santana e António Silva.
Nos tempos agitados do PREC, perguntavam os militantes da rua: “Se isto não é o povo, onde é que está o povo?” Talvez valha a pena deslocar o refrão, perguntando agora se a noção de cultura popular vai continuar a morrer entre obscenidades de música “pimba” e tradições para turista ver.