JOSÉ MALHOA O Fado 1910 |
I - Longa espera: desde o lançamento do primeiro álbum de Cuca Roseta (Cuca Roseta, 2011) não creio que o país se tenha apercebido do facto de ter nascido uma das mais prodigiosas vozes da história do fado — em boa verdade, uma das mais admiráveis cantoras portuguesas, tout court. E por que me atrevo a escrever essa magnânima palavra que é país, porventura incorrendo nos erros de apressadas generalizações? Porque, de facto, quando a população — sobretudo a população com menos hipóteses de diversificação dos chamados "consumos culturais" — está quotidianamente sujeita ao massacre da música pimba e dos horrores da reality TV, é normal (entenda-se: é imposto pela norma) que Cuca Roseta, e muitos mais criadores com um mínimo de seriedade e talento, não sejam assunto preferencial do dia a dia, nem sequer em termos meramente informativos. Que quase todos os políticos, de todas as tendências ideológicas, continuem a mostrar-se indiferentes à gravidade de tal conjuntura — que, muito para além de qualquer caso pessoal, favorece um efeito global de deseducação —, eis o que diz bem do seu vazio de pensamento.
II - Compreende-se, assim, que o concerto em Lisboa para apresentação de Raiz, segundo álbum de Cuca Roseta, não tenha sido um evento badalado por todos os recantos do país. E importa reconhecer, sem dramas, que o Teatro São Luiz (dia 26, 21h00), embora com muitos espectadores calorosos, não esgotou. O certo é que estivemos perante um daqueles eventos que, por si só, define a singularidade de um talento e, sobretudo, a fascinante amplitude da sua expressão.
III - Importa reconhecer que, para Cuca Roseta, o passo não era fácil. Desde logo, porque ela se assume como herdeira de uma tradição que resiste a "modernismos" fáceis, colocando-se sob a referência tutelar de Amália; depois, consequentemente, porque o seu canto dispensa retoques pitorescos, visando o reencontro com uma verdade do fado que nasce da peculiar aliança entre pensar & sentir. Além do mais, não simplifiquemos: sem diminuir, de modo algum, o exemplar rigor da produção de Mário Barreiros, em Raiz, o primeiro álbum de Cuca Roseta tinha resultado de um trabalho invulgar com Gustavo Santaolalla que constitui, por certo, um caso raro de entendimento da universalidade expressiva do fado sem beliscar as suas componentes de... raiz. Aliás, num contexto em que tantas vezes (na música e não só) se exalta de forma simplista e beata a "tecnologia" das mais diversas produções, muito pouco se falou do facto de a produção de Santaolalla constituir uma das contribuições artísticas mais densas, complexas e sofisticadas das últimas décadas da história de toda a música portuguesa.
IV - Acompanhada por Bernardo Couto, Luís Guerreiro e Pedro Viana (guitarra portuguesa), Pedro Pinhal (viola de fado) e Frederico Gato (contrabaixo) — com um tema partilhado ainda com outra fadista, Carolina, e o guitarrista Mário Pacheco —, Cuca Roseta mostrou uma eloquente e complexa maturação do sentido dramático da sua voz. Podemos mesmo dizer que estão praticamente superados alguns desequilíbrios expressivos do concerto que realizou há cerca de um ano, no Tivoli, em particular através de uma maior contenção nas deslocações em palco, a ponto de podermos admitir que, em alguns temas, a performance poderia ainda beneficiar de um microfone fixo. Creio que algum excesso nos elementos "decorativos" (os vasos em fundo e as folhas no chão) desvalorizaram o possível contraste dos dois vestidos usados (cuja presença teria sido intensificada por um fundo neutro), mas, por mim, não gostaria de favorecer o empolar de tais questões — assistimos, não tenho dúvida, a um dos mais belos concertos do ano.
V - O trajecto de Cuca Roseta define-se, assim, a partir de uma imensa vitalidade criativa. E não falo apenas, nem sobretudo, naquilo que será a consolidação de uma "carreira". Falo, isso sim, da fidelidade a um imaginário fadista que recusa diluir-se em eventuais formatações promocionais da world music — nem que seja preciso escrever um fado do contra.