Há ocasiões em que a realidade imita a ficção. E em 1998, o mesmo ano em que víamos Christian Bale a vestir a pele de um jornalista que procurava o paradeiro de Brian Slade uma antiga estrela (ficcional) dos dias do glam rock que supostamente havia morrido (falamos em concreto do filme Velvet Goldmine), um músico que muitos julgavam morto apresentava-se ao vivo num velódromo apinhado de gente na Cidade do Cabo (África do Sul), meses depois de realmente (re)descoberto por um jornalista... O músico chama-se Rodriguez, ou Sixto Rodriguez se quisermos ser mais precisos e, depois de invisível durante quase 30 anos, eis que estava ali perante uma plateia num território onde, sem que ele o soubesse, se tinha transformado numa lenda. A história da sua (re)descoberta é o que podemos ver em Searching For Sugar Man, filme de Malik Bendjelloul que arrebatou prémios a fio desde que foi estreado em Sundance em janeiro de 2012 (entre os quais o Oscar de Melhor Documentário deste ano) e devolveu assim a um merecido patamar de visibilidade um cantautor que a sorte não bafejou na altura certa, transformando os seus dois álbuns (editados entre 1970 e 71) e a banda sonora com as canções deles retiradas para servir este filme, em verdadeiros fenómenos de (justificada) aclamação.
Primeiro a história. Natural de Detroit, a cidade da Motown e, mais tarde, do techno, Rodriguez tinha já editado um single em 1967 quando, após três anos de silêncio, se apresenta com Cold Fact (1970), um espantoso álbum que aterrou contudo numa terra de ninguém que a história da música popular ajuda a explicar. De raiz folk (com alma Dylanesca), mas agora interessado na exploração de uma noção cénica que tanto colhia ecos das visões da produção do psicadelismo como ensaiava ocasionais devaneios orquestrais ou escutava discretos sinais de uma nova realidade elétrica, focando atenções em olhares sobre a sociedade e sobre a sua própria relação com os outros, o álbum passou a leste das atenções. O mesmo aconteceu no ano seguinte com o mais elétrico e focado Coming From Reality (1971). E tal e qual Nick Drake antecipara premonitoriamente o seu destino em Friut Tree (onde refletia como a fama era coisa que não lhe aconteceria em vida), também Sixto Rodriguez deu por si sem editora a duas semanas do Natal, tal e qual cantou em Cause dos temas do álbum de 1971. Trabalhou ainda em temas para um terceiro álbum que acabou por não gravar, e a sua vida seguiu outros caminhos, outros trabalhos (visitando pontualmente a Austrália para concertos em finais dos anos 70 e inícios dos 80).
E onde se interrompe o silêncio a que pareceram votados estes dois belíssimos discos? Foi numa África do Sul no auge da expressão do regime do apartheid, com uma nova geração de jovens brancos a encontrar nestes dois discos de um músico, que nem sabiam quem era, um sentido de vida, uma noção de revolta e um conjunto de retratos que comunicou com os cenários do que era o seu tempo e o seu lugar... Conta-nos o filme que, de resto, entre as coleções de discos dos jovens brancos sul africanos da geração de 70 havia necessariamente um Abbey Road dos Beatles, um Bridge Over Trouble Water da dupla Simon & Garfunkel e Cold Fact, do desconhecido Rodriguez.
Searching For Sugar Man conta-nos a história de como um jornalista musical sul-africano arregaçou as mangas e avançou rumo a uma quimera que, na verdade, não era mais senão uma tentativa de explicar os factos de um alegado suicídio desse músico desconhecido, feito mito sul-africano (país onde vendeu mais de meio milhão de discos, sem ele mesmo o saber)... Um dia, por volta de 1996, descobre que o morto afinal está vivo. A descoberta desperta uma multidão de músicos e melómanos sul-africanos e uma primeira digressão acontece alguns meses depois como cereja sobre o bolo, na mais perfeita expressão do que é uma história de mitologia rock’n’roll...
Essencialmente baseado numa ordenação de entrevistas, cruzando frequentemente o discurso com canções do homem que se procura e chamando como cenário central à evolução da narrativa uma série de imagens sobre a Cidade do Cabo (afinal, o terreno onde o mito floresceu), Searching For Sugar Man arruma cronologicamente a história desta busca com final feliz. É verdade que ignora a visibilidade australiana que o músico parece ter tido entre os setentas e inícios dos oitentas, mas o isolamento em que vivia a cultura popular sul-africana nos tempos do apartheid (e do bloqueio cultural então internacionalmente imposto) explica porque aquele mito terá atingido tamanha dimensão sem que ninguém para lá daquelas fronteiras disso tivesse dado conta. É de resto essa a dimensão mais interessante do filme. A consciência de como era isolada a África do Sul dos setentas e de como, um fenómeno que vende 500 mil discos não tem eco internacional nem gera questões além-fronteiras. Algum sucesso desta dimensão por um "desconhecido" numa França, Japão, Alemanha, Suécia ou Brasil não teria imediatas repercussões, lançando uma hipotética busca mais cedo e, eventualmente, a sua descoberta num mais curto intervalo de tempo?
É algo vaga a resposta do editor americano quanto aos royalties que terão eventualmente nascido de tamanho volume de vendas na África do Sul, até porque os editores locais afirmam que os pagaram. Mas mais que um ajuste de tostões, o filme acompanha a procura o homem e a redescoberta das suas canções.
Searching For Sugar Man escuta mais o mito e o processo de busca que foca aquele que (já sabemos) encontra no fim. São belas as imagens que o colocam na cidade onde afinal sempre esteve. E no fim a história (e, convenhamos, a descoberta daquelas canções) arrebata-nos. E assim se faz a mitologia rock'n'roll...
PS. Quantos mais Sugarmen haverá por aí à espera de quem os descubra?... Imaginam-se novas arqueologias na senda desta. Resta esperar que encontrem peças de igual valor...