Steven Spielberg e Liam Neeson (rodagem de A Lista de Schindler) |
A edição em Blu-ray de A Lista de Schindler marca o reencontro com um momento central na obra e na dinâmica criativa de Steven Spielberg — este texto foi publicado no suplemento "QI", do Diário de Notícias (15 Junho), com o título 'O Holocausto nas fronteiras do realismo'.
A propósito da edição comemorativa dos vinte anos de A Lista de Schindler (1993), de Steven Spielberg, valerá a pena sublinhar que, em Maio deste ano, no Festival de Cannes, um júri presidido por Spielberg deu provas de uma admirável ousadia estética e lucidez política: a atribuição da Palma de Ouro do certame ao belíssimo La Vie d’Adèle, de Abdellatif Kechiche, consagrou, afinal, o filme mais difícil, no sentido em que era também o mais susceptível de gerar profundas clivagens.
O risco assumido pelo júri de Spielberg contraria, uma vez mais, a imagem corrente do realizador de Tubarão (1975) como mera engrenagem de uma indústria (americana) dominada por lógicas banalmente mercantis. Mesmo sem discutirmos o que significa tal asserção face à história gloriosa de Hollywood, importa lembrar que a maior parte dos que tinham por hábito difamar Spielberg, permaneceram (e mantêm-se) calados face ao fulgor de um filme como A Lista de Schindler. Na prática, deixaram que se instalasse a insídia do lugar-comum: ao abordar o Holocausto, Spielberg teria feito, finalmente, um filme “sério”.
Por uma razão antes do mais descritiva, importa começar por contrapor que há muito as heranças da Segunda Guerra Mundial tinham entrado na filmografia do realizador. Antes do mais, através do muito esquecido 1941 - Ano Louco em Hollywood (1979), delirante comédia burlesca que desmontava o imaginário clássico da guerra (e dos filmes de guerra); depois, em Os Salteadores da Arca Perdida (1981), primeiro capítulo da saga de Indiana Jones que colocava o herói em confronto com os nazis, disputando o acesso ao poder mitológico da “Arca perdida”; enfim, com O Império do Sol (1987), inspirando-se no livro de J. G. Ballard, Spielberg encenava a crueza da guerra através de uma componente fulcral de toda a sua obra: o misto de perplexidade e aprendizagem que pode estar envolvido no olhar de uma criança.
Seja como for, A Lista de Schindler está longe de ser um prolongamento linear dos títulos citados. Desde logo porque se trata, desta vez, de evocar factos históricos que foram objecto de aturada investigação: Spielberg inspirou-se no livro Schindler’s Ark (1982), de Thomas Keneally (1), “romance histórico” centrado na personagem de Oskar Schindler (2), empresário, membro do partido nazi, que acabou por utilizar a sua posição de modo a manter mais de um milhar de judeus, de origem polaca, nas suas fábricas, impedindo que fossem enviados para campos de concentração. Depois, porque, para o realizador, este foi também um processo eminentemente pessoal de reavaliação das memórias do Holocausto e, em particular, das raízes judaicas da sua árvore genealógica.
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(1) THOMAS KENEALLY (n. 1935) – Escritor australiano, vencedor do Man Booker Prize de 1982, com A Lista de Schindler (Ed. Notícias). Autor de dezenas de livros de ficção e investigação histórica, também dramaturgo. Em 2012, publicou The Daughters of Mars, sobre duas enfermeiras australianas na Primeira Guerra Mundial.
(2) OSKAR SCHINDLER (1908-1974) – Figura de topo do partido nazi, colocou as suas fábricas de munições ao serviço do aparelho militar hitleriano. A história do modo como salvou muitos dos seus operários judeus, evocada no livro de Thomas Keneally, começou por ser contada por Leopold Pfefferberg, sobrevivente do Holocausto.