terça-feira, maio 07, 2013

Sócrates, televisão e democracia

Afinal, em televisão, de que falamos quando falamos de democracia? A pergunta possui algumas pertinentes variações lusitanas — este texto foi publicado no Diário de Notícias (3 Maio), com o título 'Sócrates em democracia'.

1. Uma vaga de indignação emerge de algumas zonas da sociedade portuguesa: a presença de José Sócrates como comentador televisivo seria uma ameaça para os mais altos valores da vida democrática. Como? Importa-se de repetir?... Será que vamos instituir um “tribunal popular” ainda mais simplista que os polegares ao alto do Facebook? Ou será que cada grupo de cidadãos que não nutra especial admiração pelo passado político do comentador A, B ou C vai começar a exigir que, democraticamente, o ponham na rua? A não ser que, Sócrates à parte, os portugueses vivam em divino êxtase com a pureza conceptual, a sagrada neutralidade e a excelsa virgindade ideológica de todos os comentadores políticos.

2. Quem é que, da classe política, incluindo comentadores, tem a rudimentar coragem de denunciar o que, realmente, importa denunciar? A saber: a miséria humana que se consagra num programa como o Big Brother. Quem vem lembrar que, nas modernas sociedades mediáticas, a vida cultural de um país não pode ser pensada fora dos modelos que dominam as linguagens e a economia do espaço televisivo? A não ser que a promoção da “fama” como apoteose da nulidade de pensamento e a representação da sexualidade como sistema machista de predação constituam exemplares serviços prestados aos fundamentos éticos da democracia.

3. É sabido que os comentadores de futebol, por princípio, não escutam nada do que está a acontecer nos estádios. Mas chega a ser chocante o facto de não verem ou não quererem ver. Por vezes, há bancadas literalmente vazias (não, não falo de jogos à porta fechada) e... ninguém diz nada. Não se lhes pedia que filosofassem sobre o assunto (já basta o que basta), nem que desatassem a atribuir “culpas” (idem). Mas não lhes ficaria mal exercer o gosto de olhar o mundo à sua volta. A não ser que seja mais importante noticiar o facto de, à porta de um estádio ou em volta de um autocarro, dez ou quinze adeptos decidirem distribuir insultos apenas para dar provas do seu comovente fervor democrático.