domingo, maio 12, 2013

O 'Napoleão' que Kubrick nunca filmou (2)

Este texto é um excerto de um artigo publicado no suplemento Q., do DN, com o título O retrato épico de Napoleão que nunca chegou ao cinema. 

“Kubrick teria usado a personagem de Napoleão e o contexto histórico para nos narrar uma história sobre a complexidade inerente à humanidade”, defende Eva-Maria Mengel em Everything a Good Story Should Have, o ensaio que inclui em Stanley Kubrick's 'Napoleon': The Greatest Movie Never Made. O livro revela ainda que realizador acreditava que “em momentos de pânico ou crise aguda o pensamento racional falha”. Muitas vezes Kubrick e Jan Harlan discutiram sobre “como o bom julgamento ou a sabedoria quando lidamos com assuntos complexos não é necessariamente baseado na inteligência e no conhecimento”, explica o produtor (7). Alude-se aqui a um elemento emocional, já que noções como o “amor, luxúria, preconceito ou desdém” fazem também parte desta “equação”, acrescenta o produtor. Kubrick admirava por isso aquele homem capaz dos maiores triunfos, mas também dos mais crassos erros. O filme, explica Harlan, “dividiria as plateias entre a admiração e a repulsa por Napoleão, um homem feito de carisma e charme, mas também um déspota egocêntrico que traíu a esperança e confiança de milhões de europeus” (8). O potencial destrutivo da vaidade era assim um dos elementos que Kubrick pretendia explorar neste seu retrato de Napoleão. Conhecedora a fundo do argumento e da pesquisa feita para o filme, Eva-Maria Mengel acrescenta que “há alturas em que o envolvimento de Kubrick com Napoleão tem elementos de auto-identificação. Ele enfrenta um desafio, uma luta pelo domínio do sujeito” (9), conclui.

Kubrick confessou uma vez que precisaria de toda a duração de uma entrevista para conseguir explicar as razões pelas quais decidira fazer um filme sobre Napoleão. Disse que era uma figura que o fascinava “A sua vida foi descrita como um poema épico de ação. A sua vida sexual era digna de um Arthur Schnitzler (10). Foi um daqueles raros homens que agiram sobre a História e moldaram o destino não apenas do seu tempo mas também das gerações seguintes. De uma forma muito concreta, o mundo em que vivemos resulta de Napoleão, tal e qual o mapa político e geográfico da Europa do pós-guerra é o resultado da II Guerra Mundial” (11). Além disso defendia que nunca tinha visto um filme “bom” ou “correto” sobre Napoleão. Kubrick tentou, de facto, ver os filmes que já haviam retratado a figura de Napoleão Bonaparte. E descreveu inclusivamente como sendo “terrível” o clássico mudo, de 1927 de Abel Gance (12), apesar de reconhecer nesse seu Napoleon técnicas inventivas, frisando mesmo que o próprio Eisenstein (13) o apontara como uma força que estimulara o seu interesse pelo trabalho de montagem.

Não teve contudo a oportunidade que sonhara para levar ao grande ecrã este projeto maior. Derrotado, mas não vencido com o cancelamento do estúdio, Kubrick começou então a trabalhar sobre o romance Traumnovelle, de Arthur Scnhitzler (que acabaria por levar ao grande ecrã sob o titulo Eyes Wide Shut em 1999). Durante anos a eventualidade de retomar este projeto foi considerada por muitos, até mesmo os seus mais próximos colaboradores. Afinal havia que dar utilidade ao tempo e esforço monumentais que tinha despendido na mais detalhada e ampla das pesquisas que alguma vez fizera para um filme. Em 1971, ano em que estreia A Laranja Mecânica (cuja produção avançava quando o biopic sobre Napoleão foi cancelado), o realizador ponderou ainda um modelo produção alternativo, com custos mais reduzidos, sobretudo usando um elenco desconhecido... Mas o filme não saiu de todo da gaveta.


Publicado em 2005 pela Taschen, o livro The Stanley Kubrick Archives, editado por Alison Castle, deu uma primeira ideia da dimensão deste esforço de recolha, algum do material de arquivo do realizador tendo sido também mostrado publicamente numa exposição sobre a sua obra apresentada pelo Museu do Cinema, em Frankfurt. Uma das peças que mais atenções cativou nessa mesma exposição foi o armário com um ficheiro detalhado que reuniu sobre Napoleão.

Barry Lyndon (filme de Kubrick estreado em 1974) acabaria por ser um dos herdeiros de algumas ideias que trabalhara para Napoleão (nomeadamente na técnica narrativa, como observa Eva-Maria Mengel) ou na célebre lente que a Zeiss desenvolveu para filmar apenas com a luz de velas. Usada numa das mais belas sequências de Barry Lyndon, a lente da Zeiss, inicialmente desenvolvida para o programa espacial norte-americano, estava originalmente destinada a Napoleão.

Num enorme volume publicado pela Taschen podemos hoje ler não só o argumento que Kubrick assinou, mas também textos e imagens que recolheu e muitos outros elementos que nos podem fazer sonhar sobre um filme certamente grandioso mas que acabou por nunca ser realizado. Um projeto de dimensões épicas que vai finalmente ganhar vida depois da recente notícia de que Steven Spielberg – que em tempos levou a bom porto A.I. - Inteligência Artificial (14), um outro projeto iniciado por Kubrick – irá criar uma minissérie televisiva baseada no Napoleão que o grande realizador norte-americano teve de abandonar em inícios dos anos 70.

7, in Stanley Kubrick's 'Napoleon': The Greatest Movie Never Made (Taschen, 2009), pág 44
8, ibidem
9, idem, pág. 26
10, Arthur Schnitzler (1862-1931) Escritor e dramaturgo austríaco, autor entre outros de Traumnovelle, novela que Kubrick adaptou ao cinema como Eyes Wide Shut em 1999.
11, Entrevista concedida a John Glemis, publicada no livro 'Film Director as Superstar', de 1970.
12, ‘Napoleon’, de Abel Gance (1927) é um dos vários filmes que tomaram a vida do Imperador como centro da narrativa. Entre as abordagens mais marcantes chegadas ao cinema conta-se ainda ‘Napoleon’, filme de 1955 de Sacha Guitry.
13, Sergein Eisenstein (1898-1948) Realizador russo, pioneiro do cinema soviético, autor entre outros de 'O Couraçado Potemkine' (1925), 'Alexandre Nevsky' (1938) e 'Ivan, O Terrível' (1944/45)
14, A.I. - Inteligência Artificial – Stanley Kubrick começou a desenvolver o projeto nos anos 70, contando com a colaboração direta de Brian Aldiss, autor do conto 'Super Toys Last All Summer Long'. Em 1995 Kubrick passou o projeto para as mãos de Spielberg, que o realizaria (estreou em 2001).