Entre as exposições que fazem de Londres um destino obrigatório nos próximos tempos conta-se um olhar panorâmico sobre a obra de Roy Lichtenstein que podemos ver na Tate Modern. Este texto foi originalmente publicado na edição de 1 de abril do DN com o título ‘Quando Mickey e Donald entraram na história da pintura’.
Há um pequeno livro sobre o pintor Roy Lichtenstein que se apresenta com o cativante título ‘How Modern Art Was Saved by Donald Duck’ [literalmente, ‘Como a arte moderna foi salva pelo Pato Donald’]... Quem não souber o porquê da utilização desta expressão na obra assinada por Alastair Sooke ficará sem dúvidas ao chegar à segunda das treze salas que compõem uma exposição retrospetiva sobre o pintor que está patente até 27 de maio na Tate Modern, em Londres.
Dominando uma das paredes, um óleo sobre tela de perto de 1,70 cm de lado por 1,21 de altura expande a uma dimensão invulgar o que parece um quadradinho de BD. Donald, de cana de pesca na mão, alerta Mickey: “apanhei um [pexie] grande”! As cores são primárias (azul, amarelo, vermelho), representando ‘Look Mickey’ (1961) o momento em que Lichtenstein encontrou um caminho (e uma linguagem). Conta a “mitologia” que esta, que foi a sua primeira obra pop, terá resultado do desafio de um dos filhos do pintor ao mostrar-lhe um livro de comics (há contudo quem aponte outras origens possíveis). O certo é que depois desta abordagem ao universo dos comics, a obra de Lichtenstein (então com 37 anos) ganhou um sentido e uma voz. E o que encontramos no restante percurso que podemos visitar na Tate Modern dá conta do impacte que este óleo de 1961 teve no definir dos caminhos que a obra do autor tomaria daí em diante.
Com o título ‘Litchtenstein: A Retrospective’, a exposição começa por nos dar conta das primeiras “pinceladas” de Lichtenstein, pelos caminhos do expressionismo abstracto ainda em plena década de 50. Diferentes das de Pollock, mais “controladas”, sugerindo contudo uma noção de rigor que as suas obras pop depois tomariam.
O percurso entre as salas, cronologicamente ordenado, encontra o momento ‘eureka’ perante ‘Look Mickey’ e mostra depois como, a partir dos anos 60, os mundos da BD, da publicidade e da imprensa passam a habitar o centro das atenções do pintor, criando um espaço algures para lá das fronteiras “tradicionais” da arte e os domínios da criação ao serviço do comércio. Lembra um dos textos nas paredes da exposição que o que Roland Barthes disse sobre a pop art se aplica particularmente bem à obra de Roy Lichtenstein, ao afirmar que “há duas vozes, como numa fuga. Uma diz ‘isto não é arte’; a outra diz, ao mesmo tempo, ‘eu sou a arte’”.
Caminhamos depois entre representações a preto e branco de objetos funcionais. Mergulhamos – na maior das salas da exposição – numa série de obras centradas nas temáticas do romance e da guerra (e entre elas algumas das mais célebres do pintor). Descobrimos depois algumas das suas (magníficas) paisagens marinhas e de pôr do sol, expressões escultóricas de um gosto pela art déco, reflexões sobre a própria arte (há citações a Matisse, a Picasso, a Monet). Passamos entre uma galeria dos seus “espelhos” pop. Contemplamos quadros da série ‘Perfect/Imperfect’ que resultam da condução de uma linha que nunca é interrompida. E, da fase tardia, podemos ver alguns nús, novas “pinceladas” e placidez das paisagens chinesas que encerram o percurso. A familiaridade que parte das fontes que o inspiraram acaba, afinal, por servir de cartão de visita a uma obra que, longe de unânime, representa uma expressão maior do diálogo entre cultura popular e a chamada ‘alta cultura’. No final podemos falar apenas de cultura.
A obra de Roy Lichtenstein (1923-1997) sempre dividiu opiniões. A partir de 1961 encontrou um caminho, tomando como principal fonte de inspiração (e reflexão) o universo da banda desenhada, a publicidade e as imagens criadas para a cultura de massas. E desde logo houve quem o aclamasse como uma voz maior no panorama da arte do seu tempo, mas também quem revelasse manifestações de repulsa.
Sem conhecer o trabalho que Andy Warhol estava já a desenvolver (com o tempo ambos apresentariam exposições na mesma galeria em Nova Iorque), Roy Lichtenstein acabaria por ser outra das forças maiores da ‘pop art’ e a exposição que a Tate Modern apresenta (e que corresponde à primeira grande mostra panorâmica da sua obra desde a morte do artista em 1997) dá sobretudo conta da descoberta e aprofundar de uma linguagem muito pessoal que soube também integrar elementos e referencias da história da pintura, não só através de nomes que cita, mas pelo revisitar de “espaços” com tradição no universo das artes plásticas como a pintura de paisagens, a representação do seu próprio atelier ou o estudo de nus.
A obra de Lichtenstein reflete frequentemente uma abordagem pessoal a imagens já existentes. É por isso interessante a forma como, nesta exposição, algumas dessas referencias e pontos de partida estarem representadas, concedendo ao visitante espaço para reconhecer como se manifesta o pintor perante o estímulo que desperta a obra.