domingo, abril 14, 2013

Cem primaveras depois...

As criticas não podiam ter sido piores. Um jornal francês chamava à obra uma “barbaridade”. Um diário nova-iorquino descrevia-a como um “fracasso”. E em Londres, um pouco mais tarde, um texto gracejava afirmando que o compositor teria gostado de ser primitivo e que devia ter escrito a música apenas para instrumentos de percussão. Cem anos depois, A Sagração da Primavera é não só uma das obras maiores da história da música como acabou reconhecida como sendo uma das composições mais influentes de todo o século XX... Não tropecemos no maniqueísmo de desenhar a estreia desta obra orquestral de Igor Stravinsky como um clássico caso de confronto entre o génio do(s) criador(es) e um mundo adverso, criando mais um patinho feio na história da música, com um cenário de todos errados, todos enganados no horizonte. Mas a reação quase visceral (e logo na noite de estreia, a barulheira na sala era tal que em palco a música mal se escutava) que esta música desencadeou há precisamente 100 anos traduzia mais que um mero desconforto de um status vigente (herdado do romantismo) perante uma proposta desalinhada face à norma... Era também uma marca de fim de linha de uma ordem, a eclosão da I Guerra Mundial (no ano seguinte ao da estreia) traduzindo assim a expressão política da inquietude que a estreia desta música acabara por sugerir.

Paris, maio de 1913. O (então) jovem compositor russo Igor Stravinsky (filho de um dos cantores mais destacados da Ópera Imperial, em Moscovo), estreava nesse serão a sua terceira peça para os Ballets Russes, verdadeira instituição na linha da frente da invenção artística na área das artes performativas na Paris de então. Sob a visão do empresário Sergei Diaghilev, com cenários de Nicholas Roerich e coreografia de Vaslav Nijinsky, A Sagração da Primavera sugeria uma narrativa sacrificial com raízes em histórias pagãs russas. Mas a maior das ousadias chegava na forma de uma música que respirava um invulgar fulgir rítmico, a cada sequência rearranjando formas e linhas, desafiando o ouvinte a sentir a força do brotar de nova vida que se renova a cada Primavera.

Depois da I Guerra Mundial a obra teve novas vidas, o tempo acabando por nela reconhecer a peça com tão determinante presença na história que hoje faz com que o seu centenário (a 29 de maio) seja mesmo uma das datas mais relevantes no calendário das efemérides a assinalar em 2013. E, precisamente com essa agenda, acaba de chegar aos escaparates (físicos e virtuais) uma nova gravação desta obra centenária de Stravisnky, numa direção de Simon Rattle, à frente da “sua” Berliner Philharmoniker. Na sequência de outras incursões do maestro pela obra do compositor russo (uma gravação de duas das sinfonias de Starvinsky valeu-lhe alguns prémios e distinções), Rattle junta aqui o sentido de rigor e corpo maior da orquestra berlinense a um reconhecido interesse pessoal pela música do século XX, numa abordagem elegante e pungente a esta música feita de um dinamismo e ímpeto primordial. E completa o alinhamento com a pequena Sinfonia para Instrumentos de Sopro (de 1920) e o bailado Apollon Musagète (1947)... Haverá certamente mais edições e eventos a assinalar os 100 anos d’A Sagração da Primavera. Mas com este disco de Rattle a data já conheceu uma digna celebração do seu valor.