A arte e a nossa relação com o imaginário artístico: A Melhor Oferta, de Giuseppe Tornatore, propõe-nos uma curiosa viagem por esse labirinto — este texto foi publicado no Diário de Notícias (15 Abril), com o título 'A arte, o desejo e o envelhecimento'.
Porventura para escândalo do leitor, devo confessar que nunca fui entusiasta do célebre filme de Giuseppe Tornatore, Cinema Paraíso (1988): a sua “parábola” sobre a descoberta infantil do cinema sempre me pareceu resultar de uma visão caricatural dos filmes e respectivas linguagens, reduzindo a cinefilia a uma “adoração” beata das imagens. Em boa verdade, nada do que Tornatore filmou depois, incluindo o pomposo A Lenda de 1900 (1998), me parece ultrapassar a condição de esforço aplicado, mas débil, para reencontrar as glórias narrativas dos grandes clássicos italianos. Por isso, confesso também que as minhas expectativas em relação ao seu novo filme, A Melhor Oferta, eram pouco mais que nulas. Aliás, temia que a sua “passagem” para a língua inglesa (trata-se de uma produção claramente à procura de uma difusão internacional tão alargada quanto possível) não fosse mais do que um recurso fácil para disfarçar outras limitações.
Pois bem, reconheço que as minhas expectativas me enganaram. E se é verdade que Tornatore não pode ser comparado com os grandes mestres italianos (Rossellini, Fellini, Antonioni), não é menos verdade que, desta vez, pelo menos, se revela um aplicado herdeiro dos seus valores. Aliás, para sermos mais rigorosos, o que aqui encontramos é a agilidade narrativa e o gosto simbólico de um cinema italiano “de segunda linha”, mas que, pelo menos até aos anos 80, foi servido por admiráveis artesãos como Mario Monicelli, Dino Risi ou Luigi Comencini.
As peripécias de A Melhor Oferta apelam, de imediato, à fábula existencial. O negociante de arte, Virgil Oldman (Geoffrey Rush), que utiliza os seus próprios leilões para construir uma colecção muito particular, é uma personagem que cristaliza uma contradição ancestral: através do seu desejo pelas formas artísticas, ele desenha, afinal, um retrato imaginário da perfeição feminina, por assim dizer encontrando o equilíbrio perfeito entre a “arte” e a “vida”... Enfim, as coisas estão longe de coincidir com a sua idealização e não serei eu a revelar ao leitor o enigma, quase policial, que o filme habilmente sustenta. O que importa sublinhar é o modo como Tornatore sabe encenar a odisseia de Virgil como uma crónica social que, a pouco e pouco, se vai transfigurando numa desconcertante viagem interior pelas agruras do envelhecimento (sublinhe-se o simbolismo óbvio do apelido “Oldman”: à letra, “homem velho”).
No limite, A Melhor Oferta relança uma interrogação dilacerada, tão importante na obra de Luchino Visconti, outra figura tutelar do cinema italiano. A saber: de que modo a arte nos projecta num universo imaginário que, de tão imaculado, só pode desqualificar as rotinas das relações humanas? É por isso que Virgil possui a dimensão de um genuíno herói clássico: indiferente ao banal exibicionismo das técnicas, ele não abdica de exigir à arte que satisfaça a sua sede de absoluto.