sábado, março 09, 2013

Políticos num palco de ópera (parte 4)

Este texto é parte de um artigo que foi originalmente publicado na edição de 16 de fevereiro do suplemento Q., do Diário de Notícias, com o título: Richard Nixon e Mao Tse-Tung: Um choque de titãs num palco de ópera.

A ópera Nixon in China apresenta-se dividida em três atos, o primeiro com três cenas, o segundo com duas e o terceiro, mais curto, com apenas uma. No primeiro ato acompanhamos a chegada do Air Force One a Pequim, o encontro com Mao (que um dos diplomatas ali presentes descreveu mais tarde como sendo bastante fiel na representação que a ópera propõe), onde se juntam o desejo de pragmatismo de Nixon e as palavras num plano mais filosófico do estadista chinês, terminando depois com um grande banquete em honra dos visitantes. No segundo ato seguimos as visitas de Pat Nixon a escolas e zonas rurais chinesas e o pungente confronto entre realidade e ficção na ocasião de uma representação de um bailado com alma de propaganda ao fim do qual irrompe a figura (e a força) de Jiang Qing, numa das mais inesquecíveis árias da história da ópera contemporânea. O terceiro ato mostra os protagonistas nos seus respetivos quartos, da intimidade nascendo reflexões que revelam a face interior de todos eles, os seus medos, desejos e, no fim, as suas grandes dúvidas.

A edição em CD de 1987
Nixon in China teve estreia em outubro de 1987 na Houston Grand Opera, naquela que Adams viu como uma aposta arriscada de David Gockley, o jovem diretor da companhia que tinha encomendado a obra a um compositor que “nunca tinha escrito uma nota para uma voz, muito menos uma opera”(34). O barítono James Maddalena criou então a figura de Nixon, que retomaria em várias produções posteriores, entre as quais a que recentemente o Met apresentou em Nova Iorque (e agora é editada em Blu-Ray e DVD). Um outro barítono, Sanford Sylvian, igualmente ativo até então apenas em produções locais, vestiu a pele de Chou En-lai. Carolann Page foi a Pat Nixon da estreia, cabendo a Trudy Ellen Craney o papel de Madame Mao, cuja ária de coloratura I Am the Wife of Mao Tsé-tung se transformaria desde logo num dos momentos maiores da obra. Com a orquestra de St Luke’s, sob direção de Edo de Waart, este elenco surgiria ainda em 1987 na primeira gravação em disco de Nixon In China, editado no formato de triplo CD pela Nonesuch. A produção de Houston foi anda registada em vídeo para a série Great Performances do canal público TV PBS, tendo a emissão televisiva contado com apresentação do jornalista veterano Walter Cronkite, então já retirado.

O próprio Richard Nixon foi convidado para a estreia e chegou a receber um libreto, mas, através de um elemento do seu staff, avisou que não estaria presente por razões de saúde e também pela necessidade de assegurar a publicação iminente de um texto de sua autoria. Um antigo advogado do ex-presidente disse depois a John Adams que Nixon seguia habitualmente o que sobre ele se publicava, pelo que terá provavelmente assistido à transmissão televisiva da ópera através do PBS.

Segunda gravação, em 2009
A imprensa não ficou particularmente impressionada com as primeiras apresentações que alternaram naquele teatro texano com uma produção da Aida de Verdi. Mas com o tempo, Nixon in China foi cativando opiniões. E recebeu mais do que as habituais apresentações de uma nova ópera, tanto que pouco depois passaria por Brooklyn (em Nova Iorque), Amsterdão, Paris, Edimburgo, Los Angeles e Frankfurt. O público reagia e Adams surgia em artigos de revistas com a People. O nome da ópera aparceria depois em palavras cruzadas (35). Uma segunda gravação em disco surgiria em 2009 no catálogo da Naxos. Longe da excelência do original, esta segunda gravação brilha mais pela condução da Colorado Symphony Orchestra pela maestrina Marin Alsop do que pelo elenco (desigual) onde encontramos Robert Orth no papel de Nixon, Maria Kanyova como Pat, Che-Ye Yuan como Chou En-lai e Trady Dahl como Madame Mao.

A nova edição em Blu-Ray e DVD da produção – novamente encenada por Peter Sellars – que o Met apresentou na sua temporada passada assinala o reencontro de James Maddalena com o papel de Nixon e conta no elenco com Janis Kelly (Pat Nixon), Richard Paul Fink (Henry Kissinger), Robert Brubaker (Mao Tsé-tung), Kathleen Kim (Jiang Qing) e Russell Braun (Chou En-lai). O próprio John Adams dirige a orquestra do Met nesta que corresponde assim à terceira gravação de Nixon in China nos poucos mais de 25 anos de vida da ópera. Como o próprio Peter Sellars explicou no intervalo da transmissão exibida pela Gulbenkian (e que a nova edição regista), muito mudou sobre o conhecimento que os ocidentais têm da China desde o dia em que se deu a histórica viagem de 1972 e a própria estreia da ópera em 1987. O encenador aponta, por exemplo, a memória dos incidentes na Praça Tiananmen. “Madame Mao foi julgada e suicidou-se anos depois quando cozia botões nos olhos de bonecas de pano. O médico de Mao publicou um livro lúgubre e apavorante emq ue deu detalhes sobre as orgias de morte, sexo e solidão na Cidade Proíbida dos últimos anos” de Mao, “incluindo a sua vingança final contra Chou En-lai, recusando-lhe os medicamentos para um tumor na bexiga, assegurando assim que morreria antes de si”, relata o próprio Peter Sellars no booklet que acompanha esta edição.

John Adams, por seu lado, descreve, no mesmo booklet, a China de hoje como “uma sociedade estranha e esquizofrénica, uma economia capitalista com um desejo incontrolado de crescimento. Mas, politicamente, ainda um país comunista, com uma ditadura partidária marxista à moda antiga”. Sellars acrescenta que o jogo económico mudou num quarto de século. “A China é hoje o banqueiro e o dólar americano está dependente de si. Ao mesmo tempo, o capitalismo desastroso, sem querer fazer os chineses iguais a nós, está a tentar encontrar como fazer do Oeste algo mais parecido com a China – com menos liberdades, menos direitos, maior produtividade e ordenados mais baixos”(36).

(34) in John Adams, Hallelujah Junction (Faber & Faber, 2008), pág. 141.
(35) idem, pág. 146.
(36) in booklet do Blu-Ray/DVD da produção do Met para Nixon in China.