RENÉ MAGRITTE As Férias de Hegel 1958 |
I – Decididamente, Portugal está a reescrever a história da democracia na Europa. Parece haver mesmo muito boa gente empenhada num processo de reeducação das nossas crianças que, por certo, já começaram a integrar esse novo e esplendoroso princípio: ser democrata passou a ser a arte de calar alguém. Aconteceu primeiro com o ministro Miguel Relvas, cobaia insólita da transformação de um cântico de libertação (Grândola, Vila Morena) numa arma de silenciamento. Agora, na sequência do anúncio da contratação de José Sócrates como comentador político da RTP, a multidão “internética” fez ouvir a sua voz, exigindo o afastamento do ex-primeiro-ministro da televisão pública. Vivemos no paraíso dos “polegares ao alto”: a intervenção cívica passou a confundir-se com a listagem dos que importa excluir.
II – O pensamento político chegou a esta miséria sem rosto. Esqueçam a ilusão de termos construído um país afável e tolerante onde, felizmente e democraticamente, não é beliscado o direito de alguém que foi ministro do ditador António de Oliveira Salazar (o professor Adriano Moreira) exercer o direito básico de se expressar sobre o presente político, aliás com uma seriedade e uma inteligência que suscitam respeito em todos os quadrantes de pensamento. Agora, a única ideia (?) palpável é a de que estamos sempre ameaçados por um “mal” absoluto – neste caso, José Sócrates como alegado responsável de todos os dramas que, colectivamente, enfrentamos – que importa exorcisar. Como? Um pouco como fazem os tristes comentadores de futebol que desistiram de celebrar os prazeres do desporto: por cada golo que entra, apenas se mostram empenhados em encontrar um “culpado”, seja no defesa que se distraiu, seja no árbitro que é sempre suspeito. Admirável lição de deseducação.
III – Tendo em conta a crise cultural que atravessa a sociedade portuguesa, convenhamos que nada disto é surpreendente. Em todo o caso, há uma dimensão ainda mais vergonhosa que, como sempre, alguns membros da classe política entendem agravar com um sorriso beato. Assim, tais iluminados acharam por bem vir denunciar o “escândalo” de podermos rever José Sócrates na televisão pública... O despudor concretiza-se numa forma de estupidez pornográfica: são os mesmos que não conseguem produzir um enunciado que se veja sobre a identidade da RTP, os mesmos que têm assistido num silêncio infinitamente cobarde à degradação quotidiana da paisagem televisiva (com programas que promovem a ignorância, a estupidificação e a degradação de qualquer valor humano), são esses mesmos que agora nos vêm avisar que o apocalipse está próximo e se chama “José Sócrates na RTP”. Infelizmente, perante o seu discurso tão medíocre e acintoso, não é difícil compreender porque é que, nos últimos actos eleitorais, pelo menos cerca de 3 milhões de portugueses optaram por não comparecer nas urnas. Com alguma ginástica, ainda vão conseguir demonstrar que José Sócrates também é "culpado" disso... Encore un effort.