quarta-feira, fevereiro 06, 2013

Uma visão (crítica) da américa

Termina hoje no Teatro Real, em Madrid, a série de récitas que asseguraram a estreia mundial da mais recente ópera de Philip Glass, The Perfect American. Este texto foi publicado na edição de 5 de fevereiro do DN com o título ‘Um Disney assombrado segundo Philip Glass’.

“Do Japão à Mongólia, do Nepal a Portugal, da Gronelândia ao Peru, biliões de pessoas sabem quem é Walt Disney. Mas temos de fazer melhor, temos de fazer mais”... Pela voz de Christopher Purves, quem canta estas palavras é a personagem que veste a pele de Walt Disney numa cena do primeiro ato da ópera The Perfect American, de Philip Glass, que teve estreia mundial no Teatro Real de Madrid onde ainda está em cena. Um Disney que parte do romance de Peter Jungk Der König von America e que, pelo libreto de Rudy Wurlitzer, nos mostra um homem que, com a morte pela frente, vive atormentado com um futuro em que o seu nome poderá deixar de ser reconhecido pela pessoa que foi, recordado antes pelo legado que deixou.

A ideia da ópera-retrato é cara a Philip Glass desde que, em 1974, fez a sua primeira abordagem ao espaço da música dramática com Einstein on the Beach. Nascida mais de vinte óperas e quase 40 anos depois, The Perfect American traduz sinais evidentes de uma visão musical que há muito deixou o minimalismo arrumado entre as memórias de arquivo de outros tempos (e outras músicas). De resto, um dos feitos maiores desta nova ópera é mesmo o trabalho de composição onde Glass, sem perder algumas das suas marcas de “assinatura”, aprofunda o lirismo que tem marcado alguma da sua música mais recente. Há espaço para a surpresa (mais na escrita instrumental do que na vocal) e, sobretudo, assinala-se a presença de tonalidades mais assombradas, que reforçam a caracterização da trama. O outro trunfo maior desta produção é a encenação que explora ideias do cinema de animação, em jogos de projeções em ecrãs que vão surgindo no palco, alguns em movimentos de rotação, num trabalho assinado por Phelim McDermott (que ainda recentemente colaborou na produção de Satyagraha que o Met apresentou e que a Gulbenkian apresentou em transmissão em HD).

Com um elenco algo irregular (e do qual se destacou claramente o tenor Donald Kaash, no papel de Dantine, sendo ainda digna de assinalar a igualmente segura presença de David Pittsiger, como Roy Disney), The Perfect American só não será uma ópera a inscrever na galeria das mais marcantes da obra de Glass por algumas fragilidades de um libreto que fica algo aquém da dimensão mais poética dos retratos de Gandhi em Satyagraha ou de Amenófis IV em Akhenaton. Como o próprio Glass já explicou em entrevistas, The Perfect American celebra a visão de Disney (e a presença de Warhol na primeira cena do segundo ato sublinha, de certa forma, o reconhecimento de possíveis analogias sobre a dimensão mais “industrial” de alguma criação artística). Glass e Wurlitzer não apagam do retrato as marcas que hoje ensombram a figura de Disney (como o racismo) e desenham marcas de luta laboral ( e ideológica) através de um confronto com um desenhador (Dantine) que acusa Walt de não ser autor do que assinou e de, no fundo, não ter sido mais que um empresário bem-sucedido, ao contrário de multidões que o admiram quase como um ser divino. Mas podiam ter ido mais longe...

Apesar da presença da figura de Lincoln na sua “parte” de Civil Wars, ou das memórias da Guerra Civil em Appomattox, esta acaba mesmo assim por ser a ópera politicamente mais americana de Glass. Ganhando as leituras possíveis sobre o título curiosas ressonâncias num tempo em que outros valores nos movem.