Estreada em 1937, a cantata cénica 'Carmina Burana' representou um triunfo para o compositor alemão Carl Orff. As opiniões dividem-se contudo sobre qual era a natureza da sua relação com o poder nazi. Pode esta obra dar-nos pistas que respondam a essa dúvida? Este texto foi originalmente publicado no suplemento Q. do DN a 3 de fevereiro.
Poucas obras da música erudita do século XX alcançaram o mesmo patamar de reconhecimento popular (chegou mesmo a ser usada em publicidade e é frequentemente integrada em programas voltados para o grande público). Mas poucas levantaram também tão diferentes opiniões, das mais diretas expressões do foro estético a críticas de perfil ideológico apontando ou negando a sua eventual filiação numa ideia de arte nazi. O professor e ensaísta George Steiner apontou Carmina Burana como sendo “lixo fascista” (1). Mas um comunista, prisioneiro num campo de concentração alemão, declarou em 1946 que, depois de ouvir esta mesma música, se sentiu melhor nos dias que se seguiram (2).
Conforme defende Michael H. Kater em Composers of The Nazi Era, há duas escolas de pensamento na avaliação da relação de Carl Orff (1896-1982), o autor de Carmina Burana, com o poder nazi. Nesse seu livro explica que há quem o aponte como tendo sido uma vítima do poder de então que, na sua melhor hipótese, tolerara. Pelo contrário, há quem o acuse de ter sido um colaborador e até mesmo um seguidor da ideologia nazi (3). Depois da chegada ao poder de Hitler, em 1933, Orff teve um papel fundamental na definição de um programa educacional para a música que foi adotado no país e depois da estreia, em 1937 de Carmina Burana, o seu nome habitava entre os compositores contemporâneos mais ouvidos na Alemanha, o próprio ministro de propaganda do Reich, Goebbels, contando-se entre os seus admiradores (o próprio Ministério da Propaga tendo emitido em 1941 uma nota de recomendação para que as críticas às suas obras fossem invariavelmente favoráveis (4)). Por outro lado, entre as histórias pouco claras do tempo de guerra foi levantada, mais tarde, a possibilidade de uma ligação de Carl Orff ao movimento de oposição Weisse Rose (5). Como tantos outros alemães, passou por comissões depois da guerra e o seu nome foi dado como “limpo”. Mas ainda hoje a dúvida paira sobre as suas relações com o poder entre 1933 e 45, precisamente a etapa que viu nascer algumas das suas obras maiores como Carmina Burana, Der Mond (1939), Die Kluge (1943), Catulli Carmina (1943) e o grosso do catálogo educacional conhecido como Schulwerk.
Composta entre 1935 e 36, Carmina Burana é uma cantata cénica criada a partir de poemas medievais encontrados em inícios do século XIX no mosteiro de Benediktbeuern, na Baviera. Este cancioneiro do século XIII – que ficaria conhecido como os Carmina Burana, nome atribuído por J. A. Schmeller, que os publicou pela primeira vez em 1847 – juntava poemas de bobos e menestréis, de origens que passavam pelas regiões hoje ocupadas pela França, Itália, Alemanha e Inglaterra, traduzindo ecos de temas que passavam pela “igreja, o estado, a sociedade e o indivíduo” (6). Havia entre os poemas líricas sobre o amor, a primavera, canções de dança e elementos satíricos. Muitos dos poemas estavam redigidos em latim, alguns cruzando palavras com o alemão e o francês. “A unidade espiritual da Europa, assim como a vida exuberante daquele tempo está corporizada nestas canções. Acima de tudo expressam um sentido atemporal de humanidade em todos os seus estados de alma”, explicava em 1960 Wolfgang Schadewaldt, em texto citado em Carl Orff: His Life and Music, de Andreas Liess.
Carl Orff cruzou-se com a edição de Schmeller deste cancioneiro e, dado o seu reconhecido interesse pelos espaços do palco e pelo papel da música numa dramaturgia, procurou um modo de organizar estes textos e daí partir para a composição, segundo a sua visão teatral.Carmina Burana correspondeu à primeira abordagem de Carl Orff ao latim de uma forma que Liess aponta como distinta da abordagem (que visava um sentido de objetividade) de Stravinsky em Oedipus rex: “Orff não a considera como uma língua morta, mas como a expressão vital e imediata, da vida” (7). Liess defende ainda que Orff procurou investir as suas canções de um sentido pleno de vida “simples na forma, segundo os padrões da época” (8).
A música traduz um claro afastamento dos modelos do romantismo, assinalou uma certa redução no cromatismo da orquestração e vincou o papel dos instrumentos de percussão (que adquirem considerável protagonismo em diversas outras obras de sua autoria). Mas, como o livro de Liess sublinha, o principal aspeto da música de Orff é a criação de um estilo vocal – acrescentando até o autor que os restantes aspetos da sua música são de importância secundária (9). É por isso determinante a língua na qual trabalhava em cada obra, cada uma refletindo na música as suas “qualidades instrumentais”.
Carl Orff recorre ao latim medieval em Carmina Burana. Mas em Catulli Carmina, cantata que estreia em 1943 recorre ao latim clássico (e em concreto aos poemas do romano Gaius Valerius Catullus (84 - 54 a.C.). Carmina Burana e Catulli Carmina constituem, juntamente com Trionfo di Afrodite (cantata de 1953) um tríptico que conhecemos sob o título comum Trionfi. Apesar de parte significativa da sua obra ser cantada em alemão, a relação de Carl Orff com o latim teria expressão em outros instantes, nomedamente em De Temporum Fine Comoedia, a sua derradeira obra, estreada em 1973.
Em Composers of The Nazi Era, Michael H. Kater recorda que o próprio Carl Orff que, sobretudo a propósito de Carmina Burana, o regime nazi o chegou a ter sob suspeita como compositor e cidadão porque havia abraçado nesta obra uma ideia de identidade europeia e não de nacionalismo alemão. O autor recorda que Orff chegou mesmo a defender que o uso do latim em Carmina Burana constituíra um ato de oposição (10).
Setenta e cinco anos após a sua estreia, a cantata Carmina Burana revela um sentido de longevidade invulgar entre muitas outras obras do seu tempo. “Há algo sedutor nesta particular linguagem musical artificial que Carl Orff criou”, explicou ao DN o maestro Daniel Harding em outubro de 2010, quando apresentava a mais recente gravação desta obra para o catálogo da Deutsche Grammophon. “Há aqui uma combinação com uma linguagem musical que parece ter a autoridade de ser antiga (é algo que está connosco há muito tempo). Não o digo num nível consciente, mas é uma espécie de fraquinho que os seres humanos têm por coisas que são antigas… Se andam por aí há muito tempo, é porque há verdade nelas, pensamos”. Para Harding, Orff “combina essa linguagem musical que tem ecos de outros tempos com uma arrumação que é muito moderna e fácil se assimilar. E assim cria uma espécie de linguagem musical artificial. É fácil relacionarmo-nos com ela. É inteligente e muito manipuladora ao mesmo tempo”.
1 – in Composers of The Nazi Era, de Michael H. Kater, Oxford Universty Press,2000, pág 113
2 - idibem, pág 114
3 – ibidem, pág 111
4 – ibidem, pág 132
5 – Weisse Rose – Grupo não violento de resistência anti-nazi surgido em Munique entre uma série de alunos universitários e o professor Kurt Huber. Lançaram panfletos e assinaram graffiti de oposição ao regime entre junho de 1942 e fevereiro de 43. Seis elementos foram capturados pela Gestapo e executados.
6 – Carl Orff: His Life And His Music, de Andreas Liess, Calder & Boyars, 1966, pág 82
7 – ibidem, pág 84
8 – ibidem, pág 84
9 – ibidem, pág 52
10 – in Composers of The Nazi Era, de Michael H. Kater, Oxford Universty Press,2000, pág 111