Para além de uma revisão crítica do western, Django Libertado envolve um confronto, plural e complexo, com as formas de representação da história (individual e colectiva) — este texto foi publicado no Diário de Notícias (23 Janeiro), com o título 'O velho Oeste revisto por Tarantino'.
O mínimo que se pode dizer do novo filme de Quentin Tarantino, Django Libertado, é que não deixa ninguém indiferente. A sua história dos tempos da escravatura tem suscitado polémicas cruzadas nos EUA, levando mesmo um cineasta afro-americano, Spike Lee, a declarar que não iria vê-lo por considerar que “falta ao respeito” dos seus antepassados. Uma coisa é certa, e tem sido sublinhada pelo próprio Tarantino (entretanto distinguido com o Globo de Ouro de melhor argumento original): o filme está a levar os espectadores, americanos antes do mais, a reflectir sobre a pesada herança da escravatura e o contexto que conduziu à Guerra Civil.
Em boa verdade, não se pode dizer que Django Libertado funcione, em sentido estrito, como uma evocação histórica. Fiel às raízes cinéfilas do seu olhar, Tarantino constrói o filme à maneira de um western, para mais aplicando soluções visuais que remetem para a herança de cineastas italianos como Sergio Leone (autor de O Bom, o Mau e o Vilão, Aconteceu no Oeste [capa DVD], etc.) e para o chamado western-spaghetti, género muito popular nas salas europeias durante a década de 60. À semelhança do que já fizera com o thriller (Pulp Fiction) ou o filme de guerra (Sacanas sem Lei), o western serve-lhe de pretexto para uma encenação feérica em que o espectáculo, mesmo quando convoca referências realistas, nunca é estranho ao gosto artificioso da ópera ou do circo.
A acção começa em 1858 (três anos antes da eclosão da guerra) e tem como protagonistas dois cúmplices improváveis: King Schultz (Christoph Waltz), dentista de origem alemã que se especializou em perseguir criminosos para receber os prémios oferecidos pela sua captura, e Django (Jamie Foxx), um escravo que Schultz liberta, pedindo-lhe como contrapartida que o ajude a caçar três irmãos, guardas de uma grande plantação de algodão, que deverão render uma choruda recompensa...
Até certo ponto, estamos perante as regras de muitos filmes clássicos sobre as atribulações do Velho Oeste. As diferenças começam a ser sensíveis a partir do momento em que Tarantino aposta num registo em que o tema tradicionalmente recalcado desses filmes – a exploração brutal do trabalho dos negros – se torna matéria central de Django Libertado. O confronto de Schulz e Django com Calvin Candie (Leonardo DiCaprio), proprietário de métodos especialmente violentos, irá conduzir o filme a um clímax em que, uma vez mais, a evocação da história colectiva se confunde com a imponência teatral da tragédia.
Curiosamente, na corrida para os Oscars, Django Libertado partilha o tema da escravatura com Lincoln, de Steven Spielberg, este evocando os bastidores políticos que conduziram à legislação que extinguiu a escravatura (os dois estão nomeados para melhor filme do ano). Mesmo sendo objectos muito diferentes no tratamento temático e estético, ambos reflectem um vector marcante do melhor cinema americano de anos recentes: a preocupação de revisitar as memórias históricas para repensar o imaginário dos nossos dias.