Somos um pouco aquilo que vemos, ouvimos e lemos. E o que fazemos traduz por isso aqueles que admiramos, mas também a forma como os integramos em nós, o que deles assimilamos e o modo como os reinventamos. De geração espontânea, convenhamos, o mundo tem pouco, muito pouco... Xavier Dolan é por isso, e naturalmente, espelho dos modelos e das referencias que o entusiasmam. Nada de mal nisso, antes pelo contrário... Depois de um surpreendente J’ai Tué Ma Mère (2009) sobretudo autobiográfico e de uns falhados Amantes Imaginários (2010) talvez demasiado próximos da soma Godard + Kar Wai + Almodóvar que então juntava, o novo Laurence Anyways, que ontem teve antestreia nacional ao passar na secção competitiva do LEFF, representa não o seu grito do Ipiranga face às suas referências (porque não mostra vontade em romper com aqueles que o inspiram), mas o momento em que o mesmo “eu” que dominava as personagens e clima do filme de estreia aprende a dominar as citações e figuras que quer levar ao seu cinema.
Com dimensões de alguma ambição épica (são 169 minutos de filme) Laurence Anyways em nada rompe com o que Dolan já nos mostrou. Barroco nas formas, ocasionalmente histriónico nos diálogos e com alma de grande teledisco, o filme acompanha retalhos da vida de um professor que vive um dia a dia arrumado. Trabalho, uma relação estável... Mas que desde sempre sentiu que nascera com o corpo errado. O processo de transição, a forma como a mulher com que vive, a família e colegas reagem evoluem entre saltos no tempo, porém sob uma condução narrativa que partilha um permanente diálogo com uma demanda de sons e imagens que faz afinal do filme um corpo que se afirma essencialmente como uma experiência estética (o que não significa, note-se, um abafar do tema, antes juntando esse texto ao contexto, um diluindo-se no outro).
Se a personalidade compósita que é expressão natural de uma linguagem em formação na era da informação – onde tantos dados circulam e podem ser assimilados – tem aqui a sua mais evidente expressão de um “eu” ainda em construção, as citações continuam a morar sem receio no cinema de Xavier Dolan. Das folhas que caem do céu como no Written In the Wind de Douglas Sirk ao desfile de rostos e poses como na versão do teledisco de Fade To Grey dos Visage que está disponível no DVD antológico da banda, Laurence Anyways herda elementos de uma genética que, afinal, é o DNA que constrói este olhar. Junta-se ainda a música de uns Fever Ray, Depeche Mode, Tindersticks, Kim Carnes, Beethoven ou Duran Duran (dando maior visibilidade que nunca ao brilhante The Chauffeur, a canção do álbum Rio que nunca foi single – e devia ter sido), somam-se olhares que por vezes abandonam a medula da narrativa para observar gentes e lugares ao seu redor e uma espantosa composição do protagonista por Melvil Poupaud, e encontramos em Laurence Anyways uma das melhores supresas deste ano. É que, depois do passo em falso de Amores Imaginários, a ambição evidente deste projeto poderia ter acabado num verdadeiro tropeção. Pelo contrário, e mais que nunca, mostra porque em Xavier Dolan podemos encontrar uma das vozes mais interessantes da sua geração.
Três imagens para “escutar” sons que integram a espantosa banda sonora de Laurence Anyways. Memórias pop que passam pelos Visage, Duran Duran e Depeche Mode.
Lisbon & Estoril Film Festival (dia 3)
Hoje o LEFF apresenta , pelas 19.00, no Cinema Monumental, Holy Motors, o muito esperado novo filme de Leos Carax. Ali perto, no Nimas, pelas 20.00, inicia-se o ciclo dedicado ao cinema de João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata, hoje com duas sessões entre as quais passam Parabéns, Esta é A Minha Casa, O Pastor, O Fantasma e China China. Pelas 22.00, no Monumental, Winter Go Away, de vários realizadores, é um retrato de espaços de oposição a Putin na Rússia dos nossos dias.