Teve recentemente edição em DVD o filme ‘Tomboy’, de Céline Sciama, que entre nós foi editado como ‘Maria-Rapaz’. Este texto é uma versão modificada de um outro que foi originalmente editado no DN Online com o título ‘A menina que queria ser Mikaël’.
Debates interiores sobre a identidade de género têm sido terreno fértil para uma série de filmes surgidos nos últimos anos, muitos deles com maior representação no circuito dos festivais que nas agendas correntes das estreias em sala. Veja-se o caso de um Romeos (Sabine Bernardi, 2008), a história de Lukas, um transsexual de 20 anos em processo de transição de mulher para homem. Ou de Mein Freund Aus Faro (Nana Neul, 2008) que nos apresenta a história de uma rapariga que, confundida numa ocasião com um rapaz, não corrige o equívoco gerado. Ou ainda XXY (Lucia Puenzo, 2007), interpretado por uma espantosa Ines Efron, que nos dá conta de Alex, de 15 anos, que nasceu com os orgãos de ambos os sexos e que, depois de uma infância que todos identificaram no feminino, começa a desenvolver comportamentos e características masculinas que a medicação que tomava antes suprima. Os três títulos passaram já por várias edições do Queer Lisboa. Naturalmente este panorama deve incluir o mais mediatizado Boys Don't Cry (Kimberly Pierce, 1999), protagonizado por Hillary Swank, a história de um transsexual femenino para masculino e do clima de transfobia com que se vê confrontado.
Maria-Rapaz, o título escolhido para o lançamento em Portugal de Tomboy, de Céline Sciama, é mais um claro exemplo de um espaço temático cada vez menos silencioso e solitário no cinema. O filme começa por não nos dar pistas. Vemos uma figura jovem (Zoé Héran), ao colo do pai, a guiar o carro de família. Cabelo curto, veste roupa igual à de muitos rapazes de hoje. Calções, camisola de alças. Ao chegar a uma nova cidade, em tempo de férias, encontra novos amigos e com eles entra nas brincadeiras e joga futebol. Tem dez anos e uma irmã de quase seis (brilhantemente interpretada por Malonn Lévana), mas quando em casa chega a hora da refeição, chamam-na pelo seu nome... Laure. É uma menina. Mas para os novos amigos apresentou-se como Mickaël, ao longo dos dias seguintes a irmã entrando no seu jogo até ao dia em que os pais descobrem o sucedido... Céline Sciamma, que realiza e assina o argumento, tem em mãos não só uma boa ideia, mas também um ponto de vista no modo de lhe dar forma. Mais que explicar opta por sugerir. Dá espaço e tempo às personagens, respirando um sentido de realismo que, apesar dos momentos mais dramáticos que chegam a dada altura, é sempre mais feito de luminosidade que de assombração.
Desenvolvido num workshop em Sundance, premiado em vários festivais de cinema queer (entre eles o Prémio do Júri do Teddy Award, na Berlinale de 2011), Maria-Rapaz propõe ainda um interessante jogo de olhares entre o mundo dos adultos e o dos mais pequenos. E confirma o nome da realizadora que, em 2007, já cativara algumas atenções com Water Lillies.