sexta-feira, novembro 16, 2012

Kiarostami sob o signo de Ozu

Chegou ao mercado do DVD uma magnífica selecção de alguns títulos raros de Abbas Kiarostami — este texto foi publicado no suplemento "QI", do Diário de Notícias (3 Novembro).

Em 2003, usando uma câmara digital, o cineasta iraniano Abbas Kiarostami (1) registou cinco planos de cerca de 15 minutos cada. São “bocados de vida” em que a neutralidade dos eventos se combina com a percepção sensual da própria duração: um pedaço de madeira perdido no vai vem das ondas, pessoas passeando na zona de um gradeamento em frente ao mar, reflexos do anoitecer pontuados pelo som de rãs... A reunião desses planos deu origem ao filme Five que, em subtítulo, se apresenta como “Cinco longos planos dedicados a Yasujiro Ozu”.
Five teve a sua estreia mundial no Festival de Cannes de 2004, extra-competição. A sua revisão, agora integrado numa caixa de DVD com quatro títulos de (ou sobre) Kiarostami, envolve um sentimento de desconcertante fascínio. Por um lado, compreendemos que a herança de Ozu [foto] (2) leva Kiarostami a celebrar a ambivalência visceral do tempo narrativo das imagens e dos sons: o “nada” dos acontecimentos transfigura-se em facto cinematográfico, misterioso, envolvente e indecifrável; por outro lado, na pequenez do ecrã televisivo (ou do computador), a experiência de Five adquire um inusitado poder revelador: face à poética transparência da sua “lentidão”, verificamos que a “velocidade” de muitas mensagens correntes, em especial no espaço televisivo, apenas serve para mascarar o seu vazio comunicacional, ou melhor, a promoção de uma ideia de “comunicação” que, no limite, se esgota no consumar de um qualquer link, anódino, pueril e impessoal.
Daí o mérito pedagógico de um filme como 10 sobre Dez (decididamente, os múltiplos de 5 são um dado obsessivo do universo de Kiarostami...). Trata-se, neste caso, de começar por assumir um registo documental mais tradicional, com o próprio cineasta no papel de narrador: recordando, em particular, o seu filme Dez (2002), conduz-nos numa viagem por cenários da respectiva rodagem, lembrando que alguns espectadores os reconheceram de títulos anteriores da sua filmografia como O Sabor da Cereja (1997). Tendo em conta que ele ocupa um lugar idêntico ao dos protagonistas desses filmes – como condutor de uma carro –, os dez capítulos de 10 sobre Dez funcionam como um bizarro, mas sedutor, exercício de carácter confessional: Kiarostami fala objectivamente das suas escolhas narrativas, fazendo passar a sugestão de que, num certo sentido, ele próprio poderia ser o actor/personagem das suas histórias.
É por isso também que a inclusão de ABC África (2001) nesta Colecção acrescenta um factor de “descentralização” que importa valorizar. Trata-se de dar conta de uma viagem ao Uganda, empreendida pelo realizador, com o seu assistente Selfollah Samadian, a convite da agência FIDA (Fundo Internacional para o Desenvolvimento Agrícola). Evitando o mais corrente e preguiçoso dispositivo televisivo de reportagem, que tende a apresentar-se como veículo de uma verdade “espontânea”, Kiarostami regista a sua própria distância face ao que lhe é dado ver, num misto de empatia e desconhecimento.
Nesta perspectiva, pode dizer-se que, quer na familiaridade das paisagens iranianas, quer na estranheza dos lugares africanos, Kiarostami entende e aplica o cinema como um instrumento de permanente pesquisa das fronteiras da realidade, seja ela “documental” ou “ficcionada”.
Em 10 Dias com Abbas Kiarostami, registado em Turim, em 2003, durante um atelier dedicado à realização cinematográfica, Kiarostami deixa uma perspectiva muito clara sobre a tradicional distinção entre documentário e ficção: em última instância, “essa distinção não existe”. Daí a ética que nasce do trabalho humano de contar histórias: o mundo é transparente, mas o nosso olhar não pára de o inventar. Como num filme de Ozu.
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(1) ABBAS KIAROSTAMI (n. 1940) – É o nome mais internacional do cinema do Irão, com uma obra que combina a ficção e a sugestão documental. Close-up (1990), Através das Oliveiras (1994) e Shirin (2008) são alguns dos seus títulos mais emblemáticos. O Sabor da Cereja (1997) valeu-lhe a Palma de Ouro de Cannes (ex-aequo com A Enguia, de Shohei Imamura).

(2) YASUJIRO OZU (1903-1963) – Mestre do cinema japonês, é uma referência determinante para vários autores modernos, nomeadamente na Europa. Retratista obsessivo das relações familiares, entre os seus filmes mais célebres incluem-se Primavera Tardia (1949), Viagem a Tóquio (1953) e O Gosto do Saké (1962).