Raul Brandão (1867-1930) |
Manoel de Oliveira regressa à paixão do teatro através de um grande filme: O Gebo e a Sombra adapta a peça homónima de Raul Brandão — este texto foi publicado no Diário de Notícias (11 Outubro), com o título 'Fantasmas e um profundo humor'.
[ 1 ]
Num axioma que se tornou lendário (enunciado numa conversa gravada a 31 de Agosto de 1981, para o catálogo de uma retrospectiva na Cinemateca Portuguesa), Manoel de Oliveira proclamou... a inexistência do cinema: “Tudo repousa sobre formas teatrais. Eu repito que, de facto, o cinema não existe. Penso mesmo que é saudável partirmos deste princípio.” Daí a conclusão que correu mundo: “O cinema existe como processo audiovisual de fixação; o cinema fixa o teatro.”
Mais de trinta anos passados sobre estas saborosas palavras (e mais de oitenta anos decorridos sobre o início da carreira de Oliveira, com Douro, Faia Fluvial, em 1931), sentimo-las como uma das bases de um enérgico e fascinante princípio de encenação. Não uma base exclusivamente teórica ou banalmente prática. Antes uma crença. Em quê? No facto de o poder do cinema não se enraizar em nenhum efeito de “reprodução”, porque filmar é passar, desde logo, para o mundo dos fantasmas.
O Gebo e a Sombra é mais um capítulo, sem dúvida dos mais prodigiosos, dessa arte de filmar tudo aquilo que, pelo simples facto de ser filmado, se vai libertando da condição material da sua origem. Não por acaso, Oliveira reencontra no texto de Raul Brandão os elementos necessários e suficientes para expor, uma vez mais, num misto de mágoa e profundo humor, as ilusões da condição humana. E também esse assombramento sem nome que nos faz desejar o Bem e conviver com o Mal.
Nesta perspectiva, este é um filme de calculado didactismo: aplica o cinema com a subtileza de uma parábola do século XIX, convocando o espectador para os sobressaltos da moral e os labirintos da deambulação filosófica. Filme primitivo, então? Sem dúvida: olhamos à nossa volta e não há nada que se pareça com a sua paradoxal modernidade.