A estreia de Morangos com Açúcar – O Filme relançou no espaço público uma velha dicotomia: de um lado estariam os filmes (ou outros objectos artísticos) que têm espectadores, do outro os falhanços comerciais. Rapidamente, essa dicotomia se transforma noutra: os filmes “comerciais” funcionam, os filmes “culturais” não funcionam. Ou ainda: de um lado teríamos o entretenimento que “toda a gente” quer ver, do outro a cultura que “ninguém” vê.
Qual é o principal, sistemático e muito antigo efeito deste modo de colocar as questões? É um efeito perverso de desresponsabilização de uns e culpabilização dos outros: os primeiros limitar-se-iam a fazer “comércio”, jogando com a legitimidade que o mercado lhes confere; os segundos, além de tentarem “impor” coisas que “ninguém” quer ver, fazem-no em muitos casos com dinheiros do Estado.
Profundamente enraizada no voluntarismo de um discurso de esquerda que se imobilizou na sua incapacidade de olhar o mundo, esta visão generalizou-se a toda a sociedade, tornando-se violentamente dominante no espaço televisivo. Na prática, faz funcionar um tribunal cujos fundamentos falaciosos quase ninguém questiona: quem produz, promove e injecta no tecido social coisas obscenas, moralmente sinistras como o Big Brother está automaticamente “desculpado” porque, coitado, está apenas a fazer pela vida...; entretanto, todos os autores que correm o risco de desafiar estereótipos comunicacionais e televisivos entram na lista dos automaticamente "suspeitos".
Exemplo emblemático: o país (a começar pela esquerda) finge esquecer a enxurrada de insultos e difamações a que, durante décadas, foi sujeita a obra de Manoel de Oliveira (e o próprio Oliveira) – o silêncio actual dos que protagonizaram tais atitudes, não poucas vezes colocando-se na linha da frente para aplaudir o “mestre”, é sinal de uma vergonhosa cobardia intelectual. De esquerda e de direita.