Com a adaptação do romance de Don Winslow, Oliver Stone reencena os circuitos das drogas: Selvagens ilustra a dimensão mais "experimental" da sua filmografia, evocando Assassinos Natos – este texto foi publicado no Diário de Notícias (5 Setembro), com o título 'O tráfico de drogas revisto por Oliver Stone'.
No cinema americano, a fronteira EUA/México tem funcionado como símbolo das mais diversas convulsões: ao passarem de um lado para o outro, muitas personagens começam a viver um drama que põe em jogo, não apenas o equilíbrio simbólico que a fronteira define, mas as próprias identidades individuais. Para nos ficarmos por alguns dos exemplos mais célebres, lembremos precisamente a espectacular travessia da fronteira na abertura do thriller de Orson Welles, A Sede do Mal (1958), ou ainda o pessimismo desse western já sem heróis imaculados que é A Quadrilha Selvagem (1969), de Sam Peckinpah.
Oliver Stone [foto] reeencontra esses temas, as suas mitologias e também os seus fantasmas num novo filme, Selvagens, baseado no romance homónimo de Don Winslow. Em cena está o tráfico de drogas a partir da experiência pouco ortodoxa de três jovens adultos: Chon (Taylor Kitsch) e Ben (Aaron Johnson), que mantêm uma plantação de marijuana na zona de Laguna Beach, Califórnia, e Ophelia (Blake Lively), uma musa que com eles define um triângulo amoroso sem conflito.
A história do filme inclui ainda a líder de um cartel de drogas (Salma Hayek), o seu implacável braço direito (Benicio del Toro) e um policia corrupto (John Travolta), todos eles envolvidos num crescendo de violência desencadeado pelo facto de Chon e Ben se declararem “independentes”. Ainda assim, não se pode dizer que Selvagens seja um clássico thriller, à maneira, por exemplo, de Traffic – Ninguém Sai Ileso (2000), de Steven Soderbergh (curiosamente também com Benicio del Toro num dos papéis principais). Selvagens é narrado pela personagem de Ophelia, o que favorece uma desconcertante componente romanesca: por um lado, viajamos através de um labirinto de golpes, ciladas e traições em que a simples sobrevivência de cada um está sempre ameaçada; por outro lado, Ophelia vai-nos dando conta do seu envolvimento com Chon e Ben como se fosse um utópico conto de fadas que, por força do destino, começou a correr mal...
Na trajectória de Oliver Stone, Selvagens demarca-se do seu registo mais político ou, mais concretamente, ligado às memórias da história americana do século XX. A esse propósito, vale a pena lembrar que ele assinou três evocações épicas, cada uma delas remetendo para um Presidente dos EUA: JFK (1990), centrado no complexo processo de investigação do assassinato de John Kennedy; Nixon (1995), revendo Richard Nixon como uma figura lentamente minada pelos fantasmas do caso Watergate; enfim, W. (2008), traçando um retrato, entre o drama e o picaresco, da ascensão de George W. Bush.
Selvagens pertence a um zona diferente, por assim dizer mais “experimental”, da filmografia de Stone. O seu parente mais próximo será o polémico Natural Born Killers/Assassinos Natos (1994), sobre a trajectória atribulada de dois jovens cujo comportamento violento encontra um perverso eco nos meios de comunicação. Em última instância, Stone continua a interessar-se pela tragédia íntima de uma juventude assombrada pela desagregação dos seus ideais.