domingo, setembro 02, 2012

Nos 40 anos de Ziggy Stardust (4)

Continuamos a publicação de um texto que assinala os 40 anos da edição de 'The Rise and Fall of Ziggy Stardust and The Spiders' de David Bowie e que procura verificar que impacte teve o disco no panorama social e artístico do seu tempo. O artigo foi originalmente publicado a 30 de junho de 2012 no suplemento Q. do DN com o título 'Como um 'alien' mudou Bowie e ajudou a transformar a sociedade.

Para ser uma estrela temos de nos comportar como se o fossemos de verdade. Esta era a ideia defendida por Tony DeFries, o manager de Bowie e rosto da MainMan. E é com Ziggy que se manifesta. A dada altura chegou a haver pessoas contratadas pelo management para assegurar que as portas estariam abertas a Bowie onde quer que fosse. “Tinha guarda costas e viajava por todo o lado numa limousine. As fotografias eram controladas e havia planos para reduzir o acesso da imprensa a David Bowie. Tudo isto numa altura em que, para a maioria do mercado dos compradores de discos,  Bowie era um ninguém”. (36) Mas com um disco que ajudaria este teatro a transformar um sonho num mito. Mas que chegaria a iludir o próprio Bowie, a ponto de a dada altura quase terem desaparecido as fronteiras entre ele mesmo e o Ziggy que encarnava em disco e no palco. “Ele transformou-se mesmo naquela personagem, mas até lhe foi um processo natural, porque ele transformou-se mesmo numa estrela”, comenta Ken Scott ao DN. É por isso difícil distinguir “o que era Ziggy e o que era o David”. Embora, naturalmente, “ambos fossem ambos o David”. Eram “aspetos diferentes da sua personalidade”.

Mas Bowie não estava só. E se Marc Bolan antecipara em 1971 algumas das ideias e imagens com afinidades com o que Ziggy depois representaria, em 1972 a estreia dos Roxy Music somava aos dois fundadores do glam rock uma outra importante peça num jogo que definiria um dos grandes focos de invenção musical (em esfera pop) dos anos 70.

Nicholas Pegg vê como sendo um “erro comum” a tantas outras escolas criativas o assumir de que o glam rock seria “uma espécie de movimento”. Se havia um objetivo constante, diz, “era o da diversificação da cultura e o desmantelar de lealdades tribais”. Bowie explica no livro de Pegg que tanto ele e outros pioneiros do glam, como os Roxy Music, tentaram “alargar o vocabulário do rock”. E continua: Estávamos a tentar incluir aspetos visuais na nossa música, que partiam das belas artes e de interesses pelo cinema e pelo teatro. No meu caso introduzi elementos dada e uma enorme quantidade de elementos da cultura japonesa. Creio que nos tomámos por exploradores vanguardistas, os representantes de uma forma embrionária de pós-modernismo. O outro tipo de glam rock era diretamente emprestado da tradição rock, as roupas estranhas e tudo mais. Para ser honesto, creio que éramos muito elitistas. Não posso falar pelos Roxy Music, mas eu era um grande snob. Acredito que havia esses dois tipos de glam, um alto e outro situado mais abaixo. Penso que estávamos mais na primeira categoria” (37)

Em Glam! Bowie, Bolan and The Glitter Revolution, de Barney Hoskins (livro com prefácio do realizador Todd Haynes, o autor de Velvet Goldmine) lembra que o glam rock chegou “numa altura em que a pop gritava por uma nova vaga musical, um alvoroço adolescente para rivalizar aquele com o que os irmãos e primos mais velhos tinham sido abençoados e que tinha desaparecido” (38). Mas mais que os fenómenos pop que o antecederam, o glam rock dominou o Reino Unido [chegando depois a outras paragens] de um modo que era “simultaneamente inocente e moralmente subversivo”. Barney Hoskins sublinha que “questionou noções de verdade e de autenticidade, especialmente nas áreas da sexualidade. Turvou as divisões entre straights e queers, convidando rapazes e raparigas a experimentar imagens e papéis numa utopia sem género feita de eyeliner e botas com plataformas (39)

O debate divide apenas a visão sobre quem teria sido o grande arquiteto da ideia. Para Mick Rock, “Se David Bowie era o Jesus Cristo do glam, Marc Bolan era o seu S. João Batista” (40) Nicholas Pegg justifica que “não pode ser ignorado que Marc Bolan tomou o passo decisivo para lá do folk rock acústico para uma pop elétrica e garrida e com brilhantina um ano antes de Bowie”. Mas, acrescenta que também não nos podemos esquecer, que o fez com a ajuda de um Tony Visconti pós-The Man Who Sold The World. Pegg lembra ainda que o próprio Visconti terá defendido que Bolan e Bowie semearam juntos o movimento.

O certo é que, como defende Ken Scott, Ziggy Stardust tornou-se uma referência. “Mas depois vêm o Pin Ups e Aladdin Sane, que fazem um ciclo”. O produtor lembra que, criado no auge da fama do fenómeno Ziggy, o disco de versões que ganharia forma em Pin Ups “foi um álbm estranho”. E surgiu “quando tudo começou a desmoronar em volta da primeira personagem do David: o Ziggy”. Ken Scott recorda que eram “uma boa equipa, mas estava a desmoronar-se”. Tinham “já trabalhado o suficiente” e precisavam de mudança. “E a mudança começou a chegar com o Pin Ups, que, não sendo má, não foi a mais agradável das minhas experiências de trabalho com o David. Há depois faixas de que até gosto mais no Aladdin Sane, mas como álbum o Ziggy funciona melhor. Leva-nos numa viagem”. Mesmo assim o co-produtor desse álbum mítico não entende como se transformou num ícone da história da música popular. “Não sei porque estamos a falar deste disco 40 anos depois e não dos Roxy Music ou dos T-Rex. Resultou!”, reconhece.

Ziggy Stardust vai ficar na história como “a melhor e mais sucinta das criações de Bowie”, clama o autor de Strange Fascination, que reconhece, e com razão, que o seu melhor trabalho pode ser encontrado noutros álbuns e que, até mesmo em palco Ziggy foi depois ultrapassado por feitos de digressões subsequentes. “Mas em nenhuma outra altura Bowie foi tão fácil de cantarolar como no início dos anos 70 e o interesse dos media continua a focar obstinadamente esta etapa pop melódica de Bowie”. (42) Como toda a melhor pop, como descreve ainda o mesmo autor, “o trabalho de Bowie transformou o mundano e tornou difusas as fronteiras entre as experiências vividas e as visões ficcionadas de si mesmas. Foi esta crise, esta experiência extremamente inteligente sobre o que podíamos entender como realidade ou ficção” (43), que levou depois Bowie a patamares ainda mais altos nos anos seguintes e dele faria, mais que um ícone de uma época, uma referência maior na história da cultura popular.

36 - in The Complete David Bowie (Reynolds & Hearn, edição revista em 2004), pág 273
37 – ibidem
38 – Ver Glam! Bowie, Bolan and the Giltter Rock Revolution, de Barney Hoskins (Faber and Faber, 1998), pág 5
39 – ibidem, pág 6
40 - in The Complete David Bowie (Reynolds & Hearn, edição revista em 2004), pág 278
41 - in The Complete David Bowie (Reynolds & Hearn, edição revista em 2004), pág 274
42 - in Strange Fascination, de David Buckley ( Virgin Books, 1999), pág 113
43 – ibidem, pág 118