sábado, setembro 22, 2012

Nem só de verão viveram os Beach Boys (4)

Foi em 1962, há 50 anos, que os Beach Boys editaram o seu primeiro álbum. Este texto foi originalmente publicado na edição de 25 de agosto do suplemento Q., do Diário de Notícias, com o título 'A luz iluminou os Beach Boys quando saíram do sol'.

Em finais de 1965, com o grupo novamente na estrada e já com Bruce Johnston (18) integrado no coletivo, Brian Wilson tem pela frente terreno livre para se entregar ao seu maior desafio até então. Encara o estúdio como laboratório e, ciente de que as letras de Mike Love não servem o conceito que procura, encontra novo parceiro de escrita em Tony Archer, que escrevia essencialmente textos para jingles. Quem lho apresentou foi, uma vez mais, Loren Schwartz. E, como recorda Bryan Hoskins, inicialmente Archer não se mostrou muito impressionando pelo “misticismo marshmallow” de Brian Wilson, mas ficou encantado pela beleza das composições. (19)

Grande parte da etapa de composição decorreu entre dezembro de 1965 e janeiro de 1966. Ainda sem os arranjos mais elaborados que chegariam depois ao disco, as canções não só sugeriam novos caminhos nas formas como as palavras estavam definitivamente longe de cantar os sonhos de praia e sol que haviam feito a sua agenda cinco anos antes. Mas nem tudo foram rosas.

Brian continuou a trabalhar nas canções, do seu entendimento com Tony Archer nascendo gradualmente um corpo de temas que definiria uma noção de ciclo concetual, refletindo sobre os dramas e ansiedades da transição da juventude para a vida adulta, os desafios do futuro e a natureza do amor... A tal coesão que Brian tanto admirara em Rubber Soul ganhava forma num disco dos Beach Boys.

Entre fevereiro e março, em nova intensa série de sessões, Brian grava os instrumentais, juntando em estúdio alguns músicos que tinham trabalhado com Phil Spector (20). À experiência e à capacidade técnica (dos instrumentistas e do staff do estúdio) juntou então a vontade em experimentar, o que lhe abre portas a novas descobertas e ideias, com resultados depois bem visíveis em disco. O seu cão ouve-se em Caroline No (presença que acabaria por sugerir o título para o álbum). E em Pet Sounds Brian usa uma lata de Coca-Cola para definir o ritmo.

O “milagre de Pet Sounds está na sua música e nas suas letras, que são simultaneamente simples e espantosamente complexas, assim como são capazes de gerar uma certa assombração logo depois” (21), diz Jim Fusili, que explica que este é um disco não apenas sobre os medos, as aspirações, os sonhos e as desilusões de Brian, mas do ouvinte também. Sugere ainda que Tony Archer conseguiu ter uma palavra a dizer no quadro do conceito temático, muitas vezes acabando por ser capaz de interpretar os sentimentos do músico. E defende que Pet Sounds traduz uma noção de desconforto do próprio Brian Wilson face ao mundo, onde não tem a mesma capacidade de controlo que conhece quando está no estúdio. (22) Dennis Wilson reconheceu o carácter profundamente pessoal que Pet Sounds representou para o irmão. “As pessoas achavam que o Brian era um tipo alegre até ele começar a editar aquelas canções mais pesadas, de busca pessoal, no Pet Sounds e por ali... Mas aquele material estava mais perto da sua personalidade e perceções.” E acrescenta que, com Pet Sounds, o irmão “foi capaz de organizar os seus pensamentos a um ponto em que eles se tornaram hipnóticos, mas ainda assim capazes de entreter, de ter significado e espiritualidade” (23).

Pet Sounds é, na essência, mais um álbum a solo de Brian Wilson com os Beach Boys que um disco da banda. Nenhum dos músicos tocou instrumentos, a sua contribuição limitando-se à prestação vocal, sob as ordens exigentes do “maestro” Brian. Procurando uma ideia, aperfeiçoando take atrás de take, obrigando a repetições e mais repetições, como de resto as sessões de gravação entretanto disponibilizadas em disco tão bem documentam.

Uma expressão evidente desse protagonismo de Brian Wilson ganhou forma na edição, em março de 1966, de Caroline No como single editado em nome do músico. Foi um fracasso nas vendas, mas em nada demoveu Brian de continuar a criar a música segundo a visão que imaginava para o álbum. Apesar de hoje reconhecido como a obra-prima do grupo e um dos maiores discos da história da música popular, Pet Sounds não foi coisa pacífica. Internamente gerou controvérsia (Mike Love não gostou da nova orientação da música (24)). E a editora, como descreve Brian Hoskins, entrou em “pânico”, e lançou um best of no que parecia uma operação de controlo de danos esperados... Mas Pet Sounds esteve longe de ser um desastre. Não repetiu inicialmente o patamar de vendas de álbuns anteriores do grupo. Mas gerou dois singles de considerável sucesso – Sloop John B e Wouldn’t It be Nice –, atingiu o top 10 e esteve 21 semanas entre os 40 mais vendidos. No Reino Unido, onde foi acolhido com outro entusiasmo, valeu mesmo ao grupo ser considerado a banda do ano pelo jornal de música NME, ultrapassando inclusivamente os Beatles. De tal forma que contribuiu para inspirar o seu passo seguinte: o clássico Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band. E é o próprio George Martin (produtor da maioria dos discos dos Beatles, inclusivamente desse clássico de 1967) quem o reconhece: “Sem Pet Sounds o Sgt. Pepper não teria acontecido. Revolver fora o princípio de tudo aquilo. Mas o Sgt. Peppers foi a tentativa de igualar o Pet Sounds.” (25) Por seu lado, Paul McCartney, que é frequentemente citado como um dos maiores admiradores do álbum, partilhou memórias numa reedição de Pet Sounds: “Aqueles primeiros discos surf... Estava ciente deles como banda, e até gostava, mas não me interessavam por aí além... Era um belo som... Admirávamos o canto, aquelas vozes em falsetto e as letras muito californianas... Foi mais tarde. Foi com Pet Sounds que me arrebataram. Em primeiro lugar pela escrita do Brian.” (26)

18 – Bruce Johnston (n. 1942) Juntou-se aos Beach Boys para tocar inicialmente nos concertos em 1965, acabando por integrar a banda. 
19 - in Waiting For The Sun, de Barney Hoskins (Bloomsbury, 1996), pag 106 
20 – Phil Spector (n. 1940) Autor e produtor norte-americano, criou novas técnicas de trabalho e captação de som em estúdio. Era um dos músicos que Brian Wilson mais admirava nos anos 60. 
21 – - in 'Pet Sounds', de Jim Fusili (Continuum, 2005), pág 11 
22 – ibidem, pág 69 
23 – in 'The Making of Pet Sounds', livro que integra a caixa 'Pet Sound Sessions' 
24 – O mesmo Mike Love tinha já reagido à letra de Hang on To Your Ego, na qual criticou o que reconhecia como uma sugestão de que era positiva a ação sobre o ego das drogas alucinogénicas. A letra acabaria por ser mudada, com nova versão assinada por Terry Sachen (que na época era road manager da banda), e a canção ganharia forma definitiva como I Know There's An Answer (se bem que na reedição em CD de 1990 a versão original seria finalmente editada, como faixa bónus). 
25 - in 'The Making of Pet Sounds', livro que integra a caixa 'Pet Sound Sessions', pág 120 
26 – ibidem, pág 123