Em dezembro de 1964 os Beach Boys estão já num avião, prestes a partir para o cumprimento de nova agenda de concertos. Nem são muitos, apenas uma mão-cheia de datas. Mas é nessa noite, a bordo, que Brian Wilson cede de vez. Não segue para a estrada, optando antes por regressar ao estúdio (e a digressão vê em palco os restantes quatro Beach Boys). O grupo tinha editado nesse ano o álbum Shut Down Volume 2 (com título a referir a compilação que a editora lançara em 63), ao que se seguira All Summer Long (que incluía I Get Around, que lhes dera o seu primeiro número um nos EUA) e ainda um disco de canções de Natal. Brian queria contudo focar a sua atenção noutros caminhos e desafios e fazer finalmente os discos que imaginava na sua mente. Explicou então aos companheiros de grupo que vislumbrava “um futuro bonito para os Beach Boys”, mas que a única forma de o atingir seria se eles fizessem o seu trabalho e ele mesmo o seu (como recorda o booklet da redição em 2001 de The Beach Boys Today!). “Senti que não tinha escolha. Estava esgotado mental e emocionalmente porque andava sempre a correr de um lado para o outro, saltando de avião em avião, entre one night stands, canto, planeamentos... Chegou ao ponto em que não tinha paz de espírito, nem uma oportunidade para parar para pensar. Estava baralhado e exausto. Eu sabia que tinha de deixar de fazer digressões para poder fazer justiça aos nossos discos.” (14)
As diferenças não tardaram a chegar, com o álbum The Beach Boys Today! (lançado em março de 1965) a revelar evidentes sinais de busca por um outro patamar de complexidade. Em algumas das canções deste disco surgem primeiros exemplos de um novo modo trabalhar as composições. Pequenas sementes da ideia das pequenas sinfonias que emergiriam menos de um ano depois. É aqui que Brian Wilson descobre o potencial do estúdio enquanto um instrumento musical, as técnicas e truques abrindo--lhe um novo horizonte de potencialidades que não deixará escapar. Como lembra ainda o booklet da edição deste disco, as “palavras aqui tornam-se mais pessoais, as melodias mais assombradas, os fundos musicais infinitamente mais complexos e um trabalho vocal de enorme beleza”. Além do talento na composição, Brian Wilson começa a aprofundar aqui o seu conhecimento técnico em estúdio. Algumas das suas ideias estavam um tanto adiante das formas e hábitos da época. Sentiria pouco depois esse desfasamento na pele. Mas o tempo dar-lhe-ia razão.
Jim Fusilli, num livro da série 33 1/3 dedicado a Pet Sounds, identifica em The Beach Boys Today! os primeiros sinais do caminho que levaria Brian Wilson a Pet Sounds. E aponta o lado B do álbum como uma suite melancólica feita de cinco canções com estruturas “menos ortodoxas”, com soluções nos arranjos que antecipam caminhos que o levariam a esse álbum histórico de 1966 (15). Datam também desse período as primeiras experiências com drogas como o LSD. E Jim Fusilli admite que, quando Pet Sounds começou a ganhar forma, as drogas “representavam algo importante na vida de Brian”. E explica porquê: “Talvez criassem uma espécie de vertigem que disfarçasse uma ansiedade por liberdade e o encorajasse a tomar riscos, sobretudo nos arranjos. Talvez o tenham ajudado a esquecer as suas inadequações, os problemas com Marilyn [com quem estava casado], os demónios que o pai tinha instalado no seu cérebro.” (16). Ao mesmo tempo Brian Wilson começava a desenvolver um interesse pela espiritualidade e pela noção de um ser supremo. Em muitas entrevistas ouvimo-lo a atribuir muita da sua inspiração a algo no plano do divino, mas o seu interesse pela transcendência aprofundou-se por esta altura. Em 1964 passa a morar num novo duplex em Gardner Street, onde tem por perto a presença de Loren Schwartz, agente que o apresenta ao mundo dos Byrds, a Van Dyke Parks e aos textos que alimentam uma nova cultura que floresce em Los Angeles: Kahil Gibran, Herman Hesse, Saint-Exupéry.
Em 1964, o grupo deixa bem clara que uma nova demanda mora na sua agenda quando, em maio, cantam em I Get Around que procuram “a new place where the kids are hip” [que poderemos traduzir muito livremente como “um novo lugar onde os miúdos estão na moda”]. E, como eles, os EUA estavam a mudar. Em Waiting for the Sun, Barney Hoskins cita Kim Fowley (que produziu as Murmaids em Popsicles and Icicles), que afirmou que os anos 60 começaram a sério depois do assassinato de Kennedy. “A América precisava de alguém para amar depois da morte de Kennedy, e então passou a amar os Beatles.” (17)
Os primeiros álbuns dos Beatles e até mesmo o aflorar da beatlemania nos EUA em 1964 não tinha representado até então mais do que um motivo de competição para Brian Wilson e os restantes Beach Boys. Como uma espécie de repto acrescentado, obrigando-os a responder. Mike Love chegou a reconhecer que os Beatles desafiaram Brian a ser mais criativo. Mas a chegada de Rubber Soul (álbum dos Beatles editado em dezembro de 1965) mostrou uma banda a viver um outro patamar de visão musical. Adiante do que, apesar do salto em frente, The Beach Boys Today! ou Summer Days (and Summer Nights!!) tinham traduzido. Brian admirava os Beatles, mas sabia que eram diferentes. Chegou a dizer que, onde os quatro de Liverpool por vezes simplificavam as ideias dos arranjos, ele sentiria a necessidade de criar algo mais complexo. O desafio pela frente era agora maior. E Brian sabia que tinha de responder à altura.
Qualquer coisa não estava entretanto certa quando se comparava o sonho cantado pelo grupo e o mundo ao seu redor. E no mesmo ano em que os Beach Boys cantam novo idílio em California Girls, a escalada de violência era evidente na zona de South Central de Los Angeles. Na mesma Califórnia, portanto. O single sai em julho. Os célebres motins abalam a cidade em meados de agosto... Os Mothers of Invention (de Frank Zappa) serão dos poucos grandes nomes entre a “música branca” a reagir e refletir sobre os acontecimentos. Os Beach Boys não eram necessariamente retratistas da realidade, mas antes vozes de um sonho que tinha carregado, na sua encenação de surf, sol e praia, os tons feitos de luz e sorrisos de Hollywood. Ao mergulhar em si mesmo, Brian Wilson afastava mais ainda qualquer apetite realista da música dos Beach Boys. Se artisticamente a opção lhe valeu os seus melhores discos, a verdade é que, quando o sonho acabou (entre 1967 e 68), a perceção que muitos tinham de uma banda mais dada a fantasias que às lutas que faziam a nova agenda da juventude americana, esse foi um entre os argumentos que os votaram a um estatuto que os afastaria definitivamente da vanguarda da invenção musical e do entusiasmo dos mais atentos à linha da frente dos acontecimentos. Valeu-lhes o tempo, a redescoberta de feitos maiores que devolveu álbuns como Pet Sounds ou o recentemente revelado Smile ao estatuto de obras de referência que de facto merecem. Mesmo assim, a forma como muitos ainda hoje associam os Beach Boys a uma ideia inconsequente de festa surfista datada deve muito ao tom negativo com que o grupo passou a ser tratado depois de 1968. Mas já lá iremos...
14 – ver booklet da reedição de 2001 de The Beach Boys Today! E Summer Days (And Summer Nights!!)
15 - in 'Pet Sounds', de Jim Fusili (Continuum, 2005), pág 23
16 – ibidem, pág 86
17 - in Waiting For The Sun, de Barney Hoskins (Bloomsbury, 1996), pag 74