domingo, agosto 19, 2012

Nos 40 anos de 'Ziggy Stardust' (2)

Continuamos a publicação de um texto que assinala os 40 anos da edição de 'The Rise and Fall of Ziggy Stardust and The Spiders' de David Bowie e que procura verificar que impacte teve o disco no panorama social e artístico do seu tempo. O artigo foi originalmente publicado a 30 de junho de 2012 no suplemento Q. do DN com o título 'Como um 'alien' mudou Bowie e ajudou a transformar a sociedade.

Como explica David Buckley em Strange Fascination, uma biografia sobre David Bowie publicada em 1999, entre 1970 e 71 o músico centrou atenções em outros estímulos e procurou uma nova forma de abordar a música pop. “Rejeitou o comunitarismo da contra-cultura e, injetou uma nova violência de género na poeira de estrelas da geração Woodstock”. E assim “liderou os flancos de uma geração de adolescentes confusos e desligados depois da era do flower power(5). E entre esse período de nova demanda, David Buckley identifica mesmo o ano de 1971 como aquele em que Bowie “se transformou num agent provocateur na pop-art”. O que o animou, diz, “foi o desejo de ser diferente e desafiar e derrubar as convenções musicais dominantes e os códigos morais e sexuais então vigentes. Desenvolveu a ideia de se transformar num poseur pop numa altura em que os músicos rock olhavam para os clássicos em busca de estímulos culturais mais altos ou para a tradição dos blues”. (6)

Temos então de viajar no tempo para, como Bowie, descobrir, somar e assimilar novos estímulos e outras ideias.

'Hunky Dory' (1971)
Entre as suas referências musicais mais estruturantes encontrávamos os primeiros discos dos Pink Floyd (7) e desde cedo mostrara grande interesse pelos Velvet Underground e pelo universo pop de Andy Warhol ao qual o grupo nascera associado. No outono de 1971, de visita a Nova Iorque passou pela Factory para um encontro que, como descreve David Buckley, a um nível pessoal esteve longe de ser um sucesso. “Warhol aparentemente tinha detestado a homenagem que Bowie lhe havia feito em Hunky Dory (8), que lhe havia sido dado na forma de um acetato no meet and greet, e estava mais interessado nos sapatos”. (9) que o músico levava calçados. Apesar desse instante, que hoje mora entre os episódios da mitologia dos dois ícones, Bowie acabaria por desenvolver uma abordagem à pop algo semelhante à de Warhol no cinema e restante criação artística. “Na Factory, Warhol construía fama e transformava pessoas sem talento em estrelas de cinema. E ao fazê-lo desafiava a forma como o estrelato era alcançado, mostrando como se podia fabricar com tamanha facilidade. (…) Bowie achou sedutora a ideia de que o estrelato podia ser fabricado. (10) Uma ideia que em tudo se ajustava a uma outra, defendida pelo seu novo manager, Tony DeFries (11), que acreditava que parecer uma estrela era o primeiro passo para alguém atingir o estrelato.

Buckley diz ainda que, apesar das ligações de Bowie e Warhol com as culturas de vanguarda, “ambos ostentaram o consumismo da arte popular e com o tempo tornaram-se os dois homens de negócios” (12). Todavia lembra que o que Bowie estava a fazer “não era simplesmente ser uma entidade comercial por si mesmo, mas antes mostrar que todo o rock tinha uma base comercial”. (13)

Entre outros dos seus contemporâneos admirava profundamente Iggy Pop e também Van Morrison (de quem chegou a tocar Madame George), Jaques Brel (de quem cantaria em 1973 uma versão de Amsterdam) ou Marc Bolan . E na construção da ideia que acabaria por gerar o nascimento de Ziggy Stardust entram ainda em cena duas outras figuras: O Legendarey Stardust Cowboy (14) e Vince Taylor (15). O primeiro, desde cedo encantado pelos universos da ficção científica, sempre caminhou em terrenos longe das atenções mainstream e foi um dos pioneiros do psychobilly. O segundo foi uma figura com alguma visibilidade na cena rock'n'roll britânica entre finais dos anos 50 e inícios doa 60.

David Buckley defende que a maior influência no processo de reinvenção dos horizontes que levaram Bowie a Ziggy Stardust não vem contudo dos músicos que tomou como referência, mas sim a cultura japonesa. No livro refere que o próprio David Bowie afirmou que o designer japonês Kansai Yamamoto (16) foi “100 por cento responsável pelo corte de cabelo e cor de Ziggy”. Em segundo, “a influência japonesa sobre Ziggy veio do seu muito peculiar teatro estilizado. Bowie estava fascinado pelo kabuki japonês e pelo teatro nô e aproveitou a sua essência para os concertos da fase Ziggy/Aladdin Sane, conferindo às atuações o ar de um certo aviltamento secular de uma das formas teatrais mais formais”. (17) No ocidente, como reflete o autor, o Japão era ainda visto como sendo “uma cultura alienígena”, pelo menos “na forma como era representado pelos tabloides”. Para o biógrafo, Ziggy Stardust “dignificou a cultura japonesa e deu-lhe ideias fora do espectro do rock anglo-americano”. Bowie contribuiu assim para “internacionalizar a pop, encetando um prolongado fascínio pelo Leste”. (18)

O kabuki foi, segundo reflete Buckley em Strange Fascination, “perfeito” para a construção da figura de Ziggy Stardust uma vez que, “na sua natureza, é uma forma teatral que cruza a identidade de género”. Nesta forma de representação teatral todos os papéis, sejam masculinos ou femininos, são invariavelmente interpretados por homens. “E a sua natureza andrógina foi entendida por Bowie como sendo de importância fundamental”. (19)

Um outro elemento importante para a definição da ideia central a Ziggy Stardust chegou do cinema. Em concreto com A Laranja Mecânica (20), de Stanley Kubrick. O filme de Kubrick, mesmo proibido na altura, revelar-se-ia um dos episódios mais influentes do cinema de então nos espaços da música popular. Além do peso marcante junto de Bowie e da própria adesão de muitos músicos de então à visão eletrónica de obras de compositores de outros tempos que Wendy Carlos (21) propunha na banda sonora, podemos apontar descendências no nome da editora Korowa (que editaria os Echo & The Bunnymen em inícios dos anos 80) ou nos telediscos de Love Missile F1-11 dos Sigue Sigue Sputnik ou de The Universal, dos Blur, que citam claramente formas, cores e lugares do filme. O próprio Bowie usou a banda sonora do filme para assinalar a sua chegada ao palco durante a Ziggy Stardust Tour, facto que podemos constatar no filme de D.A. Pennebaker Ziggy Stardust: The Motion Picture. Os dados estavam somados. Mas os relatos históricos parecem sugerir que Ziggy Stardust não nasceu fruto de uma estratégia bem montada, mas de uma sucessão de acontecimentos que, perante estes estímulos, o conduziram a uma ideia.

5 – in Strange Fascination, de David Buckley ( Virgin Books, 1999), pág 85 
6 – ibidem, pág 104 
7 - Em 1973 gravaria em Pin Ups uma versão de See Emily Play e recentemente juntou-se a David Gilmour para gravar uma nova versão de Arnold Lane 
8 – Bowie gravou em Hunky Dory o tema Andy Warhol, uma canção acústica dedicada ao artista americano. 
9 - in Strange Fascination, de David Buckley ( Virgin Books, 1999), pág 107 
10 – ibidem  
11 – Tony Defries – Manager de Bowie nos anos 70. 
12 - in Strange Fascination, de David Buckley ( Virgin Books, 1999), pág 107 
13 – ibidem, pág 109 
14 – O “Stardust” do nome de Ziggy terá provindo deste músico americano, nascido em 1947 e com o nome real Norman Carl Odam. David Bowie gravou mais tarde uma versão de I Took A Train on a Gemini Spaceship, do Legendary Stardust Cowboy, no álbum Heathen, de 2001. Por sua vez, o Legendary Spartust Cowboy gravou uma versão de Space Oddity. 
15 – Vince Taylor (1939-1991) Uma das vozes da primeira geração rock'n'roll britânica em finais dos anos 50 e inícios dos anos 60. 
16 - Kansai Yamamoto (n. 1944) Designer japonês com influência determinante na criação da moda contemporânea japonesa. 
17 - in Strange Fascination, de David Buckley ( Virgin Books, 1999), pág 117 
18 – ibidem 
19 – ibidem, pág 118 
20 - A Laranja Mecânica – Filme de 1971 de Stanley Kubrick baseado no romance homónimo de Anthony Burgess. Bowie usou elementos da banda sonora na abertura dos concertos da Ziggy Stardust Tour. 
21 – Wendy Carlos (n. 1939) Figura pioneira da música eletrónica. Assinou a banda sonora de A Laranja Mecânica como Walter Carlos, ou seja, antes da operação de mudança de sexo.