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No dia 5 de Agosto, completaram-se 50 anos sobre a morte de Marilyn Monroe, mas todas as efemérides são insuficientes para dizer o seu misto de energia e vulnerabilidade — este texto foi publicado no Diário de Notícias (5 Agosto), com o título 'Aquela que morreu para resgatar o nosso medo'.
Como definir a trajectória fulgurante e a vida efémera de Norma Jean Mortenson? Meio século depois, como exprimir essa proximidade emocional que nenhuma distância temporal parece conseguir rasurar? Eis uma visão possível: “A solidão foi difícil, o papel mais difícil que representaste. Hollywood criou uma super-estrela e o sofrimento foi o preço que tiveste de pagar. Mesmo quando morreste, a imprensa continuou a assediar-te: tudo o que os jornais tiveram para dizer foi que Marilyn foi encontrada nua.”
Parece, talvez, o balanço de um desencantado moralista, ao mesmo tempo sociólogo e filósofo, capaz de combinar a frieza do discurso analítico com a vibração das memórias. O certo é que são palavras provenientes da canção Candle in the Wind, de Elton John, escrita com Bernie Taupin e lançada em 1974 (reescrita, em 1997, em homenagem à Princesa Diana). A sua contundência ajuda-nos a compreender algo de essencial: se Marilyn Monroe persiste como uma poderosa referência mitológica, não é apesar da sua morte prematura, mas através dela.
Grande questão existencial, sem dúvida. Por um lado, vivemos no delírio de uma civilização mediática que, da lírica do rap às aventuras de Batman, passando pelo jornalismo contaminado pela reality TV, mantém uma relação “directa”, ora sarcástica, ora moralista, com a nitidez cruel da morte; por outro lado, somos incapazes de pensar a morte no plano individual, a ponto de nos acomodarmos numa definição social de “cidadão” tingida de infantilismo, descrevendo cada um de nós como um mero alvo que importa “proteger”.
Para esta civilização com medo do seu próprio medo, Marilyn persiste como uma imagem apaziguadora: face à sua candura, podemos comportar-nos como se a sua morte permanecesse fora de qualquer medida do tempo. No limite da perversidade (coisa também infantil, convém recordar), queremos partilhar a mitologia da sua morte. Foi o que fez, aliás, Hugh Hefner, o fundador da revista Playboy (cujo primeiro número, em Dezembro de 1953, consagrou Marilyn como a primeira playmate): Hefner adquiriu, para si próprio, a cripta ao lado da de Marilyn, no cemitério do Westwood Village Memorial Park, em Los Angeles.
Num certo sentido (que é, inevitavelmente, um sentido trágico), Marilyn renasce regularmente no nosso imaginário através de um assombramento que nenhuma efeméride pode resumir. Ela é aquela que já não está presente mas que, em boa verdade, nunca partiu: contemplamos nela a nossa imensa vulnerabilidade. Mais do que isso: a sua cândida luminosidade substitui-se ao nosso medo da morte, como se algo dela aceitasse acolher e resgatar o pânico de não sabermos lidar com o silêncio de já não existirmos. Natalie Wood resumiu tudo isso numa frase de tocante inteligência afectiva: “Quando vemos Marilyn no ecrã, não queremos que lhe aconteça nada de mal.”