domingo, agosto 26, 2012

Ecce Hommo ou... Monty Python?

Que dizer sobre o caso bizarro do "restauro" do Ecce Homo, em Borja, região de Saragoça [dossier no El Pais]? Como lidar com o absurdo "natural" do nosso presente? Ou ainda: que resta da significação original da imagem? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (25 Agosto), com o título 'As mensagens que se vão perdendo'.

Provavelmente, teremos que concluir que, afinal, os Monty Python eram realistas. Como quando um deles dizia: “Tal como a televisão a cores, aí está a minha filosofia, completamente a preto e branco.” De facto, o caso de Cecilia Giménez e do seu Ecce Homo “restaurado” desafia todas as formas da sensatez de ver, descrever ou interpretar o mundo... De tal modo que a celeridade e o aparato da sua fama na Internet, dizendo muito pouco sobre tão disparatada intervenção, possuem um poder irremediavelmente revelador sobre muitas formas contemporâneas de entendimento, circulação e partilha das imagens.
Vale a pena encarar as “alternativas” ao fenómeno Giménez. Confrontando-o, por exemplo, com imagens que, em termos mediáticos, quase ninguém reproduz, transfigura ou comenta (nem que seja por mera ironia). Por exemplo, em Serralves tem estado disponível uma notável exposição do espólio de Ernesto de Sousa... Ou do outro lado do Atlântico, no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque, onde pode ver-se (nem que seja na Internet!) a maior mostra já dedicada ao design para crianças (brinquedos, roupas, mobília, etc.) ao longo do século XX... Quantas imagens já vimos de tais eventos? Quantas foram reproduzidas milhares de vezes?
Em boa verdade, a infeliz anedota de Cecilia Giménez encerra uma lição pouco edificante sobre a ilusória transparência da nossa relação com as imagens: o que, realmente, nos mobiliza é o aparato da decomposição, não o valor simbólico seja do que for. Vivemos em continuada adoração do falso: na pornografia iconográfica do nosso dia a dia, já quase ninguém lamenta a perda da própria mensagem, o sofrimento de Cristo, que a imagem envolvia. E não seria preciso ser crente para sentir a comoção desse sofrimento.