Continuamos a publicação de um artigo originalmente apresentado no suplemento Q., do DN, a 19 de maio de 2012 com o título ‘O ano em que o mundo ouviu os Beatles e viu nascer os Stones’. Em 1962 os Beatles lançavam ‘Love Me Do’, o seu primeiro single. No mesmo ano, depois de um primeiro ensaio, os Rolling Stones estreavam-se num pequeno palco em Londres. 50 anos depois esses dois momentos moram na mitologia da música popular.
“Os Beatles deixaram-nos estupefactos quando apareceram”, reconhece Keith Richards em Life on The Road, lembrando o impacte que o grupo de Liverpool começa a dada altura a ter fora da sua cidade. “O Love Me Do apareceu e era como se fosse um ataque súbito vindo do norte. (...) Andávamos a tocar o Muddy Waters (64) e o Jimmy Reed (65). Ainda não tínhamos dado um concerto (ou ainda não éramos a banda), mas já éramos a coisa mais vibrante da cidade e temos de acreditar nisso mesmo, sobretudo se se está no começo”, explica o guitarrista (66). E é sua a frase: “Os Beatles abriram as portas e nós passamos por eles e mantivemo-las abertas” (67)
Mick Jagger lembra na mesma série de entrevistas que Os Beatles, a Cavern (a sala onde atuavam mais regularmente em Liverpool), estavam a acontecer, “mas os media estavam em Londres”. E defende que que o sul de Inglaterra estaria “mais interessado em ter a sua própria pequena cena”. E é quando se começa a ouvir falar de uma pequena cena de blues, da qual os Rolling Stones seriam, segundo o vocalista, “as figuras mais óbvias” (68).
Mas mesmo formados sob evidente admiração de escolas concretas dos blues, os Rolling Stones tinham uma personalidade própria. Não eram dados a imitações. E resolvem agir como reação aos Beatles. “Vamos fazer o que os Beatles não fazem”, decidem. “Era como não usar um uniforme”, diz Keith Richards (69).
Estavam já em 1963 quando receberam a visita de Andrew Loog Oldham, que com eles começou a trabalhar logo de seguida. Duas semanas depois assinavam um contrato com a Decca. Andrew, recorda Keith em Life, trabalhara com Brian Epstein “e teve um papel determinante na criação da imagem dos Beatles”. Segundo o guitarrista, o manager dos Beatles tê-lo-á despedido “por alguma discussão comezinha”. Furioso, como descreve, Andrew Loog Oldham “lançou-se por conta própria”. Os Stones, diz, foram o “instrumento da sua vingança”. (70)
Poucos dias depois de assinado o acordo com a Decca. entram em estúdio Mas desta vez o aluguer do espaço não morava nas suas preocupações: pagavam-lhes para tocar... Muitas das primeiras sessões decorreram nos Regent Sounds, que Keith Richards recorda como sendo uma pequena sala forrada a caixas de ovos “e com um gravador Grundig”. E “para que parecesse mais um estúdio”, continua, “tinham pendurado o gravador numa parede em vez de simplesmente o pousar sobre a mesa”. Assim “parecia mais profissional”, comenta. (71)
Mas tal como acontecera com os Beatles, também a chegada dos Rolling Stones a um contrato com uma grande editora traria um momento difícil. O contrato obrigava-os “a descartar o Stu [ou seja, Ian Stewart]”, explica Keith Richards. “Seis pessoas são gente a mais e a vítima natural é o pianista: o showbiz é tão brutal quanto isto”. Coube então a Brian Jones, que Keith descreve como “o auto-designado líder da banda”, comunicar a decisão ao pianista. Foi duro, diz em Life. Ian Stewart não se terá mostrado surpreendido, “talvez já o tivesse antecipado, pensando até no que faria caso acontecesse”, sugere. Mas descreve a reação do pianista como a de alguém “totalmente compreensivo”. Tanto que continuou a tocar nos discos dos Rolling Stones. “Só lhe interessava a música” (72)
O primeiro single dos Rolling Stones, uma versão de Come On, de Chuck Berry, saiu para as lojas muito pouco tempo depois da sessão de gravação: “mais do que em semanas, as coisas evoluíram em dias”, comenta Keith em Life, reconhecendo que o grupo tomou com essa escolha uma opção “deliberadamente comercial”. Hoje admite que poderiam Achei que poderiam “ter feito melhor, mas sabia que ia causar impacto”. (73)
Estavam a dar os primeiros passos como banda editada. Mas mostravam-se já preocupados com o seu próprio futuro. “Ninguém durava muito tempo”, reflete Keith, apontando Elvis Presley como o único “a desmentir a regra” (74) Explica que, quando editaram Come On, caminhavam ainda no circuito dos clubes. O disco fez o seu caminho até ao top 20 e em poucos dias estavam transformados em estrelas pop. “De repente vestem-nos (...) uns casacos de xadrez e somos levados pela maré”, descreve o músico que reconhece que os Rolling Stones precisavam então de um plano de acção. É que, como ele mesmo afirma, “os casacos não duram muito tempo. (75)
A gravação de I Wanna Be Your Man como segundo single foi decisão inteligente e acertada, com resultados imediatos. Mas não era esse ainda o plano de ação que lhes garantisse mais que uma temporada de vida. Tinham de ir mais longe ainda. E a Andrew Loog Oldham deve-se uma intervenção decisiva quando lhes apontou que, senão encontrassem outra fonte de novo material para gravar, o momento que tinham conquistado não iria durar. E era impossível imaginar uma existência longa e bem sucedida a viver, sistematicamente de versões, mesmo as mais bem escolhidas e mais espantosamente interpretadas. Keith Richards confessa em The Rolling Stones – A life On the Road que, para si, a grande contribuição de Andrew Loog Oldham para os Rolling Stones foi a ocasião em que o fechou a ele e a Mick Jagger durante um dia na cozinha, dizendo-lhes que não os deixava dali sair sem uma canção. Aquela tarde “pareceu uma eternidade”, mas chegou o momento em que encontraram a “coragem” para enfrentar o resto da banda com uma canção para que todos tocassem. Era The Last Time. E em fevereiro de 1965 o primeiro single escrito por Mick Jagger e Keith Richards dava aos Rolling Stones o seu terceiro número um.
Voltando a 1962... Depois de ouvirem pela primeira vez Love Me Do a passar na rádio – George Harrison lembra como acordou a mãe aos gritos, o pai não ficando muito satisfeito, porque tinha de se levantar cedo para fazer o turno da manhã – os Beatles começam aos poucos a cativar atenções fora dos espaços onde até então haviam feito a sua carreira. Em finais de novembro regressam a estúdio. Rejeitam a proposta de George Martin – que pensara numa versão de How Do You Do It?, com a qual os Gerry and The Pacemakers chegariam ao número um em abril de 1963 – e optam por gravar, uma vez mais, um original seu. Escolhem Please Please Me, que editam com Ask My Why no lado B, a 11 de janeiro de 1963... A canção chega ao número um. Segue-se o álbum de estreia, a que chamam também Please Please Me, mais um terceiro single, From Me To You, em abril... A beatlemania só ganha forma maior mais perto do fim do ano, mas os dados estavam lançados.
64 – Muddy Waters (1913-1983) Músico norte-americano considerado como o “pai” dos blues de Chicago.
65 – Jimmy Reed (1925-1976) Outra grande figura dos blues. Grande influência para nomes como Elvis Presley ou os Rolling Stones.
66 - The Rolling Stones – A life On the Road, de Jools Holland e Dora Lowenstein, pág 13
67 – ibidem, pág 21
68 – ibidem
69 – ibidem, pág 23
70 – in Life, de Keith Richards, pág 133
71 – ibidem, pág 135
72 – ibidem, pág 136
73 – ibidem
74 – ibidem
75 – ibidem, pág 137