Para onde vai a RTP? Será que caminha para um trágico apagamento? Eis uma grande questão política & cultural ou, se preferirem, de política cultural — este texto foi publicado no Diário de Notícias (30 Julho).
Cada vez que vejo a prodigiosa série Mad Men, na RTP2 (quarta-feira à noite), não posso deixar de pensar que estou perante algo que, a curto prazo, poderá deixar de existir. Estou a falar de quê? Pois bem, de um canal público a difundir um produto de excelência num horário que não é ofensivo.
Bem sei que confessar tal gosto de espectador equivale em muitos circuitos do pensamento (?) televisivo a ser automaticamente rotulado de “intelectual”. Entenda-se: não se está sequer a tentar descrever o trabalho seja de quem for. Em Portugal, a utilização dominante da palavra “intelectual” continua a ser insultuosa. Lembro-me mesmo de ter sido acusado de tal pecado quando me atrevi a defender entusiasticamente um tal Herman José a interpretar uma personagem chamada “Tony Silva” [foto]... Já lá vão 30 anos, continuo a ser um perigoso “intelectual” e, pelo caminho, fui perdendo algumas virtudes cristãs, a começar pela paciência com a estupidez.
O que está em jogo é de outra natureza e excede os limites benignos dos meus desabafos. Acontece que, perante a gloriosa indiferença da classe política (esquerdas e direitas risonhamente confundidas, com honrosas e discretas excepções), estamos a viver o prólogo da maior tragédia cultural do pós-25 de Abril. A saber: a destruição metódica da RTP. O obsceno bailado de intenções, especulações e comissões equivale, não tenhamos dúvidas, a uma morte anunciada.
Não simplifiquemos. A história da RTP não está isenta do vício de colagem aos formatos mais medíocres da reality TV, concursos, novelas e seus derivados. Mas o que está em jogo não pode ser reduzido à lengalenga jurássica, alimentada por boas consciências de todos os quadrantes, dos programas “sérios” contra o “entretenimento” (ou o contrário, tanto faz...). O que está em jogo é a possibilidade de clonagem da RTP num magma de derivados do Big Brother, com ficções pueris e “famosos” cuja eloquência discursiva todos os dias alimenta os nossos impulsos suicidas.
Os mais angelicais peões da nossa vida política gostam de pôr um ar muito grave e lembrar que importa não excluir a “cultura” do espaço televisivo. Triste ilusão. Ou será apenas refinado cinismo? De facto, como máquina de significação, geradora de valores de comunicação, a televisão não é um “veículo” de cultura: a televisão é, sempre foi, a questão cultural, por excelência, da sociedade portuguesa.
Daí que a discussão (política, por certo) sobre se o Estado deve ou não ter uma televisão nos conduza, quase sempre, a um labirinto sem solução. O que está em causa é a possibilidade de toda uma sociedade ser vencida por uma lógica em que, para além da medição de audiências, seja proibido pensar. Ironicamente, anda por aí uma patética discussão sobre tal medição, mas faltam vozes a defender o direito de cada espectador à pluralidade que, dizem, define a vida democrática.