quarta-feira, julho 04, 2012

No cinema olha-se, na televisão grita-se...

PERSONA (1966), de Ingmar Bergman
Cada vez mais, a estética televisiva favorece o pitoresco e a arbitrariedade; recentemente, tornou-se moda conferir automático valor simbólico e argumentativo a tudo o que grita... — este texto foi publicado no Diário de Notícias (1 Julho), com o título 'A televisão do futebol e dos berros'.

Um dos mais belos interditos do cinema clássico estipula a impossibilidade de cruzamento dos olhares de personagens e espectadores. Em termos simples: o actor não deve olhar para a câmara ["Regard (à la) caméra"]. É uma interdição ambígua que um mestre como Alfred Hitchcock foi pervertendo através dos seus enigmáticos planos subjectivos: recordemos o divertimento trágico que é Janela Indiscreta (1954) ou ainda a assombrada teia de olhares do inquietante Psico (1960). Mais tarde, cineastas como Ingmar Bergman ou Jean-Luc Godard transformaram tudo isso numa arte de desafiar as certezas de todos os olhares. Recorde-se o exemplo do genial Persona (1966), em que Bergman filma Bibi Andersson e Liv Ullmann como reflexo uma da outra, num jogo de espelhos que não pode deixar de implicar o espectador.
PSYCHO (1960), de Alfred Hitchcock e LA CHINOISE (1967), de Jean-Luc Godard
Nos tempos que correm, o conceito dominante de televisão tem-se encarregado de destruir essa admirável disponibilidade para discutir as imagens do mundo, seus mistérios, ambivalências e silêncios. Como? De forma metódica e quotidiana, marginalizando o cinema. Mas também promovendo o voyeurismo grosseiro de apanhados e reality shows em todas as suas frentes de expressão, incluindo a informação.
Recentemente, em particular através de algumas reportagens (portuguesas, espanholas, etc.) do Euro 2012, deparámos com a consagração de um novo tipo de figurante televisivo. É o cidadão feliz com a sua própria decomposição humana: assim que vê uma câmara de televisão, desata aos pulos e aos gritos. Normalmente, surge em grupos mais ou menos caóticos, mas o comportamento é sempre idêntico: berrar para a câmara parece confundir-se com a proclamação de uma identidade de deprimente (e deprimida) nostalgia infantil. Quando um repórter dirige alguma pergunta a um desses cidadãos, a resposta é quase sempre uma expressão rude, a tender para a utopia do monossílabo: “Aaargh!”, “Vitória!”, “Portugal!”. Percebemos também que as televisões tomam a sério esta pornografia mediática do disparate, uma vez que, não poucas vezes, há quem nos diga coisas como: “Fomos auscultar as reacções dos portugueses...”
Esperar que, um dia destes, possamos encontrar Bergman em horário nobre é um pouco como acreditar que um especulador de madeira de eucalipto possa vir a fundar uma associação de protecção do pinhal de Leiria... Em todo o caso, vale a pena dizer que este estado de coisas reflecte uma militante deseducação das imagens (e para as imagens). No fundo, reduz-se o olhar de uma câmara à procura do pitoresco mais ou menos grosseiro, ao mesmo tempo que se proclama o cidadão como protagonista obrigatório do assassinato da sua própria inteligência.
Formular a possibilidade de desligar a câmara seria um primeiro passo simbólico para (re)discutirmos a responsabilidade inerente à produção de qualquer imagem. Infelizmente, esse é um drama moral que só ao cinema parece interessar.