Mildred Pierce, a mini-série da HBO dirigida por Todd Haynes, constitui um exemplo modelar de uma maneira de fazer televisão que não menospreza a riqueza de toda uma vasta herança cinematográfica. A sua existência coloca, afinal, questões actualíssimas sobre os modos de ver e programar televisão e cinema — este texto foi publicado no Diário de Notícias (30 Abril), com o título 'As lições de Mildred Pierce'.
A recente edição em DVD da série televisiva Mildred Pierce, de Todd Haynes, com Kate Winslet no papel principal, relança-nos na questão central das relações cinema/televisão. Desde logo, pelas próprias características do produto: concebido como uma mini-série (cinco episódios) para a HBO, há nele um fôlego dramático visceralmente cinematográfico. Depois, pela hipótese que a sua existência atrai: até que ponto faz (ou poderia fazer) sentido distribuir Mildred Pierce também como um objecto cinematográfico, isto é, para ser projectado numa sala escura?
Sabemos, mais do que nunca, que o consumo do cinema em sala está cada vez mais condicionado pelo domínio de campanhas promocionais que privilegiam os blockbusters e seus derivados (estamos, aliás, a entrar na “temporada de Verão”). Sabemos também que os hábitos de frequência regular das salas têm sido abalados, tornando os espectadores mais vulneráveis a essas campanhas. Enfim, conhecemos muito bem a facilidade com que, com assustadora frequência, as televisões dão automática visibilidade a esses mesmos filmes, afastando-se (e afastando-nos) da diversidade do cinema contemporâneo.
Mildred Pierce é, nesse aspecto, um exemplo duplamente motivador. Por um lado, a adaptação que Haynes faz do romance de James M. Cain (que, em 1945, dera origem a uma versão com Joan Crawford, dirigida por Michael Curtiz), embora respeitando as lógicas televisivas de duração e programação, distingue-se em tudo e por tudo pela sua excelência cinematográfica. Por outro lado, podemos perguntar o que está realmente a ser feito para não deixar os espectadores (sobretudo os mais jovens) ceder às facilidades equívocas dos downloads, reconquistando-os para os prazeres específicos do cinema nas salas de... cinema.
Pela sua ligação com todo um frondoso passado, ao mesmo tempo literário e cinéfilo, a mini-série de Todd Haynes [foto] (cineasta de Velvet Goldmine, Longe do Paraíso e I’m Not There) envolve ainda um factor suplementar de importante valor simbólico. A saber: é possível trabalhar as mais variadas memórias sem ceder ao pitoresco televisivo, isto é, sem transformar as narrativas num inventário de “demonstrações” sociológicas mais ou menos moralistas. Aliás, raras vezes se terá feito um produto televisivo tão subtil, e também tão contundente, na percepção da transformação dos padrões do comportamento feminino.
Em boa verdade, Mildred Pierce é apenas um sintoma de uma complexa conjuntura cultural e económica (e tanto mais quanto não consta que algum canal generalista português o vá programar onde é o seu lugar natural: o horário nobre). O que está em causa é a invenção de novos laços de comunicação e contaminação entre programações televisivas e programações cinematográficas, com o objectivo fundamental de não fragilizar ainda mais as bases do consumo audiovisual.