segunda-feira, abril 02, 2012

A saga marciana que cai por terra


John Carter nasceu nos primórdios do século XX como uma expressão de ficção que decorre das sugestões de um livro de “divulgação” científica lançado em finais do século XIX. Motivado pelas observações do italiano Schiaparelli, que identificara figuras na superfície marciana às quais havia chamado canalli, Percival Lowell fazia em 1895 um retrato do planeta como um mundo seco e moribundo no qual os habitantes nas zonas equatoriais dependiam de canais que trariam a água desde as regiões polares. Esta visão de Marte teve expressão imediata na ficção no histórico A Guerra dos Mundos, de H.G. Wells (publicado ainda em 1898) e, pouco depois, na primeira de uma série de narrativas de aventuras através das quais Edgar Rice Burroughs (o criador de Tarzan) fez chegar, por teletransporte, um solado americano a Marte, algures em finais do século XIX...

Publicadas inicialmente em 1912 em forma de série nas páginas de uma pulp magazine, as primeiras aventuras marcianas de John Carter chegaram a livro em 1917 sob o título A Princess Of Mars, datando as primeiras tentativas de levar o herói ao grande ecrã de 1936, numa produção de animação que chegou a ser trabalhada mas acabou rejeitada pelos estúdios (numa mesma altura em que Flash Gordon, um claro herdeiro de John Carter, era herói de serials de tempero sci-fi). Houve mais projetos, todos eles sem fumo branco (um deles na Disney, em inícios dos oitentas). Mas foi agora, em 2012, no centenário do nascimento do herói que Rice Burroughs levou a Marte, que John Carter chegou finalmente ao cinema. E convenhamos que um caso histórico da literatura de ficção-científica (inspirador quer de romances de escritores como Robert A Heinlein, Arthur C Clarke ou Ray Bradbury ou de realizadores como George Lucas ou James Cameron) merecia melhor filme...

O romance de Rice Burroughs sugere um mundo árido, em clima de dieta tecnológica que, de certa forma, a concepção visual que a equipa que a Disney colocou ao serviço desta adaptação, comandada por Andrew Stanton (que se estreia no cinema de imagem real depois de assinar para a Pixar filmes como À Procura de Nemo ou Wall-e) procura respeitar... Porém, contra a visão inspirada que David Lynch captou na adaptação do Dune de Frank Herbert, o planeta Marte de John Carter parece mais coisa de jogo vídeo. Ingénua aos olhos críticos de um espectador do século XXI, a narrativa (que nasceu numa etapa de ainda grande juventude da literatura de ficção científica) cruza os condimentos da saga espacial com uma pitada de romance intergaláctico sendo, desde logo, coisa inevitavelmente anacrónica numa idade em que filmes como Gattaca de Andrew Niccol, Dark City de Alex Proyas ou Moon de Duncan Jones mostram outros caminhos para este género cinematográfico. Todavia há males ainda maiores num filme que em nada parece reconhecer o valor referencial que o texto de Edgar Rice Burroughs teve para a ficção científica. Interpretações capazes de dominar nomeações aos Razzies do ano que vem, uma lógica que não parece procurar senão uma valorização do aparato digital e uma insistente necessidade de somar elementos de comic relief a cada mão cheia de minutos que passam são apenas alguns dos argumentos que deitam por terra esta saga marciana.