Foi recentemente lançada entre nós, em tradução portuguesa, a reunião dos livros que, em conjunto, fazem o volume conjunto de Persepolis, de Marjane Satrapi. Este texto foi originalmente publicado na edição de 3 de abril do DN com o título 'A revolução iraniana vista pelos olhos de uma menina'.
Marjane tinha nove anos quando, em 1979, a revolução depôs o Xá e instituiu uma república islâmica no Irão. 1980, como ela mesma recorda, “foi o ano em que se tornou obrigatório usar o véu na escola”. Marjane não gostava de o usar porque não percebia a razão. Antes, em 1979, andava numa escola laica francesa em Teerão, “onde os rapazes e as raparigas estavam juntos”. E, de repente: “Ficámos com o véu e separadas dos nossos amigos...” É assim que começa um relato de mais de 30 anos de vida que Marjane Satrapi ( hoje com 42 anos) relatou nos dois volumes de Persépolis, uma graphic novel que editou entre 2000 e 2004 e que, em 2007, ela mesma adaptou ao cinema.
Filha de uma família da classe média com convicções políticas de esquerda, Marjane começa por recordar os dias em que os pais saíam à rua para manifestações contra o Xá. Mais tarde, já depois da revolução, lembra outras manifestações pró e contra o véu. Até que as mudanças em curso trouxeram novas regras. Ao mesmo tempo que estala uma guerra com o Iraque. A evolução da narrativa relata então uma progressiva supressão de liberdades, histórias de denúncias, de repressão, de execuções de opositores ao regime.
O retrato do mundo social e político do Irão dos anos 80 chega- nos sempre pelo prisma da pequena Marjane. Que tanto comenta o que vê na escola e ouve contar em casa, como mostra que a sobrevivência passa a viver de jogos de aparências.
Aos 14 anos, Marjane foi enviada pelos pais para a Áustria. Regressaria mais tarde ao Irão, onde lembra que o seu “comportamento em público” e “em privado estavam em pólos opostos”. Fazia festas ( proibidas) com os amigos e via canais estrangeiros com uma antena parabólica. Tentando uma vida “normal”. Casou aos 21 anos, divorciou- se pouco depois. E mudou- se para França, onde hoje vive e trabalha.
Persépolis é, mais que apenas uma autobiografia, a história da relação de uma mulher com o seu país. No texto que abre o livro, Marjane Satrapi diz- nos que a“grandiosa civilização” [persa] que vive na história do seu país tem sido quase sempre, nos tempos mais recentes, “associada ao fundamentalismo, ao fanatismo, ao terrorismo”. E por isso, “como iraniana que viveu mais de metade da sua vida no Irão”, diz que essa imagem “está muito longe da verdade”. Daí a importância que atribuiu a Persépolis entre os demais títulos da sua obra tanto em livro como no cinema. Marjane acredita que “uma nação inteira não deve ser julgada pelos crimes de uns quantos extremistas”. E ao mesmo tempo não quer que os “iranianos que perderam a vida nas prisões defendendo a liberdade, que morreram na guerra contra o Iraque, que sofreram às mãos de vários regimes repressivos ou que foram forçados a abandonar as suas famílias e a fugir da sua pátria sejam esquecidos”. Por isso, conclui: “Podemos perdoar, mas não devemos nunca esquecer.”
Foi a própria Marjane Satrapi quem, em parceria com o desenhador francês Vincent Paronnaud (nascido em 1970), assinou o argumento e a realização de Persépolis, o filme que em 2007 levou ao grande ecrã uma série de situações que originalmente tinha apresentado sobretudo em Persépolis – A história de uma infância (de 2000), o primeiro volume da graphicnovel que teve depois continuação em 2004 em Persépolis 2 – A História de Um Regresso. O filme segue de perto a linha gráfica que Marjane tinha já revelado no seu livro. E, salvo pontuais elementos coloridos, respeita o preto e branco das páginas publicadas poucos anos antes. Na sua versão original (em francês), contava com as vozes de Chiara Mastroiano (Marjane adulta) ou Catherine Deneuve (a mãe).