domingo, abril 08, 2012

Cinema francês... dobrado???

Um dos grandes fenómenos do mais recente cinema francês, Intouchables, surgiu nas salas portuguesas com o título Amigos Improváveis. O filme é um bom exemplo de um cinema de raízes populares que se mantém vivo e activo. Acontece que, entre nós, chegou também em cópias dobradas... Quem fica a perder? Antes do mais, o próprio filme — este texto foi publicado no Diário de Notícias (1 Abril), com o título 'Variações sobre a comédia humana'.

Esta semana lançado nas salas portuguesas [estreou a 29 Março], o filme francês Amigos Improváveis (título original: Intouchables), dirigido pela dupla Éric Toledano e Olivier Nakache, é um dos grandes acontecimentos do mais recente cinema francês. Grande, entenda-se, no plano comercial: com mais de 19 milhões de espectadores em França, trata-se não apenas de um sucesso esmagador (o segundo maior de sempre para a produção francesa no seu próprio território), mas também de um fenómeno que tem contaminado outros mercados (mais 6 milhões só na Alemanha).
O ponto de partida é o caso verídico de um homem muito rico que, depois de um acidente que o deixa tetraplégico, estabelece uma relação muito especial com o “acompanhante” que o trata no dia a dia. Mais do que um “caso de vida” (para utilizarmos a terminologia consagrada no espaço televisivo), esta é uma verdadeira comédia humana centrada num sentimento muito dos nossos dias: afinal, neste mundo saturado de derivações de “comunicação”, como é possível (se é que é possível) construir uma relação genuinamente humana?
A eficácia emocional de Amigos Improváveis é tanto maior quanto se apoia num magnífico trabalho dos actores principais, François Cluzet e Omar Sy. Aliás, as qualidades de tal trabalho surgem como um ponto crítico do lançamento do filme entre nós, uma vez que tal lançamento está a ser feito com algumas cópias dobradas em português (em salas que exibem também a versão original).
Situação insólita, sem dúvida, que a empresa distribuidora do filme (Zon Lusomundo) explica pela vontade de mobilizar espectadores, sobretudo os mais velhos, que deixaram de manter uma relação regular com as salas. Insólita e paradoxal, convém acrescentar: por um lado, tal vontade, mais do que legítima, envolve questões absolutamente centrais na dinâmica do audiovisual (“pervertida” pelos desequilíbrios gerados pela relação de muitos potenciais espectadores com a oferta alternativa de televisões por cabo e Internet); por outro lado, é inevitável referir o efeito devastador da dobragem no clima sonoro do filme e, em especial, nas subtilezas do trabalho dos actores (para mais, produzindo um efeito “normalizador” que apaga, literalmente, a dimensão espacial das vozes).
Dito isto, importa acrescentar também que os problemas envolvidos não podem ser afunilados numa discussão unilateral da dobragem e no desenho dos seus “prós” e “contras” (afinal, rigorosamente inconciliáveis). De facto, importa lembrar que a questão laboral que está por detrás de tudo isto ganha em ser formulada na sua verdadeira amplitude. Que é como quem diz: não se trata de definir a dobragem como um “complemento” para dar mais trabalho aos actores, mas sim de lembrar que a diversificação da sua actividade passa, não por aqui, mas pela consolidação de estruturas (cinematográficas, televisivas e teatrais) que criem outras alternativas de trabalho.