Continuamos a publicação integral de um extenso texto sobre o compositor Philip Glass publicado no suplemento Q. do Diário de Notícias, assinalando os seus 75 anos. O texto, com o título 'Acordar cedo e trabalhar todo o dia é o segredo de Philip Glass' foi publicado a 28 de janeiro.
É contemporâneo do início do seu trabalho para os recursos mais convencionais dos teatros de ópera o encetar de um trabalho regular de Philip Glass com o cinema. Em 1965 fora no quadro dos trabalhos de gravação da banda sonora de Chapaqqua (de Conrad Rocks, estreado em 1966) que conhecera Ravi Shankar e, com ele, a descoberta do gatilho que abriu a porta à descoberta de uma linguagem. Em finais dos anos 70 tinha composto a música para o filme Mark Di Suvero, de François de Menil (editada em disco como North Star em 1977). É contudo ao ser integrado nessa vertiginosa aventura (estreada em 1982) a que Godrey Reggio chamou Koyaanisqatsi que Philip Glass assina o seu primeiro momento de grande impacte no mundo do cinema.
O projeto remontava já a inícios dos anos 70, num tempo em que Godfrey Reggio trabalhava no Institute for Regional Education, altura em que realizou filmes para campanhas destinadas à televisão. Em colaboração com o diretor de fotografia Ron Fricke (o mesmo que mais tarde realizaria o filme Baraka, em 1992), começa a recolher imagens para um filme sem argumento. Escolhem boas imagens, sem rumo definido. Com tempo a improvisação dá lugar a uma ideia que ganha forma, começando a desenhar um retrato do mundo em que vivemos, as marcas da presença humana e os sinais de desequilíbrio entretanto gerados. Philip Glass cria e grava então para Koyaanisqatsi (expressão na língua dos índios hopi que traduz uma noção de vida em desequilíbrio) uma música que serve o filme em impressionante sincronismo com as imagens, dando-lhes como que uma voz.
Pouco depois Glass assinava a música para Mishima, de Paul Schrader (1985), A Thin Blue Line de Erroll Morris (1988) ou Bent, de Sean Matias (de 1997) (43). Colaborou com Martin Scorsese compondo a partitura para Kundun, filme de 1998 sobre os primeiros anos de vida do 14.º Dalai Lama, um homem que Glass conhece na vida real e de quem tem uma foto, a seu lado, na sala onde trabalha todos os dias, em casa. Kundun valeu-lhe a primeira das três nomeações que já recebeu para os Óscares da Academia, os dois restantes casos surgindo em 2002 com As Horas, de Stephen Daldry (adaptação em 2002 do romance homónimo de Michael Cunningham) e Diário de um Escândalo, de Richard Eyre (2006).
Não é unânime a opinião que muitos têm sobre o seu trabalho para o grande ecrã. Na verdade não é o primeiro compositor com trabalho central nos palcos de concertos e ópera a dedicar atenção e trabalho ao cinema. Prokofiev compôs para o cinema de Sergei Eisenstein. Shostakovich fez música para vários filmes na URSS dos anos 50 a 70. Schoenberg trabalhou para Hollywood. Nyman e Mertens também têm entre as suas discografias títulos que nasceram no cinema (ambos trabalharam inclusivamente com Peter Greenaway). No sentido inverso, Nino Rota ou Bernard Herrmann desenvolveram trabalhos notáveis fora do espaço de afirmação que o cinema lhes deu. Mas das palavras de Glass, a crítica entre pares não o incomoda. “Muitas pessoas no mundo a que alguns chamam 'música séria' ou música para concerto nunca escreveriam uma peça para cinema porque temeriam que a sua credibilidade como compositores de arte ficasse comprometida. Ficam atormentados por ideias destas, o que significa que têm de ensinar contraponto em alguma universidade algures e têm de servir um establishment musical que tem ideias muito peculiares sobre o que é relevante em termos musicais e estão assim controlados pelo que outras pessoas pensam sobre a sua música.” (44) Ao mesmo tempo, a sua visão sobre a relação da indústria do cinema com a arte é também profundamente crítica: “Não diria que a indústria do cinema esteja interessada na empresa de fazer bons filmes. Basicamente é uma indústria do entretenimento, interessada em fazer dinheiro entretendo as pessoas. E é o que é. Nesse ambiente há pessoas a fazer filmes muito bons. Acho que Kundun era um filme muito bom. E Mishima também o era. Koyaanisqatsi não é um filme de indústria, assim como Powaqqatsi também não é.” (45) Powaqqaatsi (1988) foi o filme que se seguiu a Koyaanisqatsi no mapa de um tríptico em colaboração com Godrey Reggio que se completaria em Naqoyqatsi (2002). No filme de 1988 assimila formas e ecos da chamada world music. Na terceira parte afirma-se mais próximo do trabalho para orquestra que, com regularidade e progressivo protagonismo, começou a entrar na agenda dos seus trabalhos, começou a marcar o seu trabalho em inícios dos anos 90.
O trabalho de Glass para o cinema não se esgota contudo na criação de bandas sonoras para novas produções. Nos anos 90 compôs três óperas tendo como ponto de partida três filmes de Jean Cocteau (46) (uma delas, La Belle et La Bête, adaptando em sincronia as vozes dos cantores aos movimentos dos lábios dos atores). “Muitas óperas nasceram de outras literaturas. E, cem anos depois do aparecimento do cinema, com toda uma nova linguagem apresentada, ainda ninguém tinha feito uma ópera baseada num filme. Houve apenas experiências na Broadway. E não podemos ignorar no cinema uma enorme fonte de criatividade. Decidi, então, tentar três modelos de o fazer, escolhendo Cocteau, um grande colaborador multifacetado. Quase um mentor para o meu trabalho, dado o seu envolvimento em diversas formas de espetáculo. Comecei com Orphée, e depois da Belle et La Bête e, aos poucos, reparei que cada um dos casos levantava a questão da criatividade e, para o colocar de modo genérico, um modo muito especial de transformar o mundo real num universo de magia.” (47).
Outro trabalho algo diferente com o cinema surgiu quando a Universal lhe propôs a criação de música para uma reedição do filme de 1931 Drácula, de Tod Browning. Glass descreveu este trabalho como um “esforço de devolução de interpretação ao universo do cinema”. O cinema nos dias de hoje “não é um espaço de espetáculo com intérpretes na sala... É projetado num ecrã e é mecanicamente reproduzido. E o cinema é uma arte performativa muito interessante. Há quem diga que é a forma artística do século XX!... Mas o que o cinema tem de interessante é o facto de, apesar de ser uma arte performativa, não é uma arte interpretativa”. De certa forma, o que fez em Drácula e La Belle et La Bête são “tentativas de devolução da interpretação ao cinema”. (48)
43 – Bent, adaptação de uma peça de Martin Sherman, teve banda sonora de Philip Glass. Inclui a canção 'Streets of Berlin' na voz de Mick Jagger, que entra no filme. A mesma canção teve depois versão por Ute Lemper no seu álbum 'The Punishing Kiss', em 2000.
44 - in Glass, A Portrait, de Robert Maycock, Sanctuary, 2002, pag 149
45 – ibidem, pág 136
46 – Jean Cocteau (1889-1963) Escritor, pintor e realizador francês. Philip Glass criou três óperas a partir dos seus filmes Orphée (estreado em 1949), La Belle et La Bête (1946) e Les Enfants Terribles (1929).
47 - in DN, 30 de Outubro de 1996
48 - in 'O Corvo Está Vivo', DN, 23 de Setembro de 2000