domingo, março 04, 2012

Nos 75 anos de Philip Glass (4)


Continuamos a publicação integral de um extenso texto sobre o compositor Philip Glass publicado no suplemento Q. do Diário de Notícias, assinalando os seus 75 anos. O texto, com o título 'Acordar cedo e trabalhar todo o dia é o segredo de Philip Glass' foi publicado a 28 de janeiro.

“Bom, Philip, foi muito interessante. Agora o que me diz de escrever uma ópera a sério?”... As palavras (que ficaram na história) são de Hans de Roo, diretor da ópera Holandesa que acabara de ver Einstein on the Beach em Amesterdão. Philip Glass respondeu-lhe que o faria com todo o gosto. Mas o que seria então essa ópera a sério? E Hans de Roo explicou que seria uma criação para a sua orquestra, coro e solistas. Glass aceitou o desafio. Recuperou a figura de Gandhi que deixara de lado nos almoços com Robert Wilson e avançou para a composição de uma ópera a que chamaria Satyagraha (26). Sem o imaginar, abria a porta àquele que se afirmaria como o mais central dos focos da sua carreira.

Satyagraha provou ser o começo da mais bem-sucedida e mais bem documentada carreira de um compositor de ópera na segunda metade do século XX. A Glass é inclusivamente creditado o salvamento de uma arte da estagnação dada a falta de impacte e quantidade decrescente de outras óperas contemporâneas.” (27)

Mais que em Einstein on the Beach, Satyagraha deu voz ao homem político (e também ao homem místico) que habita a alma do compositor. Das suas viagens à Índia em inícios dos anos 70 trazia memórias de histórias contadas sobre Gandhi. E em Nova Deli tinha encontrado um livro que tinha por título Satyagraha. “Fazia a descrição do tempo que Gandhi passara na África do Sul, para onde tinha ido em 1893 na qualidade de jovem advogado formado em Inglaterra. Os 21 anos que se seguiram constituem o período no qual nasceu o Gandhi que o mundo hoje recorda. Ele chegara da Índia aparentemente sem ter conhecimento da discriminação racial que era imposta a todos os não europeus pelo Governo branco da África do Sul.” (28)

Satyagraha é a palavra em sânscrito que podemos traduzir como “a força da verdade” e que Ghandi tomou como nome para o movimento que então criou e liderou na África do Sul. “Quase todas as técnicas de protesto social e político que são hoje moeda corrente na vida política contemporânea foram inventadas e aperfeiçoadas pelo jovem Gandhi durante o seu tempo na África do Sul. Como armas contra o Governo sul-africano, Gandhi utilizou marchas, a desobediência civil, a resistência passiva, o encarceramento voluntário e as petições públicas. Em 1914 o General Smuts, o chefe do estado, acabou por se ver forçado a abolir as mais enérgicas leis de discriminação racial, coletivamente conhecidas como The Black Act.” (29). E aceitando, de certa forma, esta visão daquele que admira, recentemente Philip Glass juntou-se até aos que protestaram à porta do Lincoln Centre, em Nova Iorque, numa noite em que Satyagraha subia ao palco do Met. A ideologia que desenhava as linhas mestras da ópera revelava-se, afinal, em sintonia com o discurso e os grandes debates do nosso tempo.

Imagem de uma produção de Akhnaten
Parte desta relação com Gandhi e as suas ideias a segunda ópera-retrato, em Akhnaten, a terceira, evocando o faraó da XVIII dinastia (30) que instituiu o primeiro culto monoteísta. De resto, Glass nunca se demoveu de refletir sobre o mundo político na sua música. E se os textos da Sinfonia N.º 5 ( de 1999) expressam uma vontade de busca de um entendimento ecuménico e de paz para a humanidade, em Hydrogen Jukebox (de 1990, sobre textos de Allen Ginsberg (31)), estabelece o retrato de seis arquétipos do americano de finais do século XX. Além disso Glass mantém em paralelo com o seu trabalho como compositor uma relação próxima com a Tibet House (32), organização que visa chamar atenção para a causa tibetana. E todos os anos é curador do concerto de recolha de fundos que é organizado no Carnegie Hall, onde já atuaram nomes como os de Patti Smith ou Michael Stipe (ex-R.E.M.).


26 – Em Novembro de 2011 a Gulbenkian apresentou, em transmissão integrada no programa Met Live in HD, a mais recente produção de Satyagraha em direto do Met, em Nova Iorque.
27 - in Glass, A Portrait, de Robert Maycock, Sanctuary, 2002, pag 35
28 – in Música de Philip Glass, de Philip Glass, Quasi, 2007, pag 138
29 – ibidem, pag 139
30 – Akenaton - Faraó do Egito entre 1353 e 1336 a.C, foi o criador do primeiro culto monoteísta. Conhecido também como Amenófis IV. Philip Glass partiu da sua figura para criar Akhnaten (1984) a terceira das suas óperas-retrato.
31 - Allen Gisnberg (1926-1997) Poeta norte-americano e uma das figuras centrais da beat generation. Trabalhou com Glass em 'Hydrogen Jukebox'. A sua poesia serviu ainda a versão original de 'Wichita Vortex Sutra' e a sua 'Plutian Ode' serve de base à 'Sinfonia Nº 6' do compositor.
32 – Tibet House – Instituição fundada em 1987 pelo professor universitário Robert Thurman e Philip Glass, procura sobretudo preservar as heranças da cultura tibetana. Todos os anos organiza um concerto de beneficência que tem Glass como programador.