quarta-feira, março 07, 2012

Filmes pe(r)didos:
Lisa and the Devil, de Mario Bava
por Carlos Conceição


Memórias de filmes afastados daquelas listas habituais que fazem a conversa de todos os dias. Filmes "perdidos". Ou se preferirem, "filmes pedidos"... Hoje lembramos Lisa and The Devil filme de 1972 de Mario Bava, que aqui é evocado pelo realizador Carlos Conceição. Um muito obrigado ao Carlos pela colaboração.

Lisa And The Devil, de 1972, mais do que um filme perdido é um filme re-encontrado. Para os admiradores de Mario Bava ou do cinema italiano de terror em geral, é mais do que isso: um grande melodrama surrealista que resume brilhantemente o porquê de Bava ser um maestro digno de ser estudado junto a nomes como Hitchcock ou Chabrol, ao mesmo tempo que o reconcilia com o público depois de vários anos de fracassos de bilheteira. A maior pena é que essa reconciliação tenha sido adiada para dois anos depois da morte do realizador e que o filme tenha, até hoje, existido apenas em DVD.

No final dos anos 60, Bava pareceu perder o controlo do que tinha feito do seu cinema uma obra a seguir, tendo praticamente inventado o Giallo sozinho em filmes como Blood And Black Lace ou As Três Faces Do Medo. Filmes curiosos como Danger Diabolik sublinham o estatuto de autor de culto que lhe estaria reservado quando chegasse a era do vídeo mas, em termos de salas, foi preciso inverter o body-count com Twitch Of The Death Nerve (ou Bay Of Blood) para que o seu nome voltasse a ser pronunciado. Em 72 o sucesso repete-se com Baron Blood, o que lhe dá carta branca para atacar o seu projecto mais pessoal, este Lisa And The Devil.

Compreensivelmente Bava tinha muito orgulho neste filme mas o que podia ter sido o glorioso coroar de uma carreira transformou-se em pura humilhação quando os distribuidores, intimidados pela narrativa não linear e pela atmosfera alucinogénea do filme, lhe viraram as costas e se tornou eminente re-pensar a montagem. Tendo o filme sido mostrado no Festival de Cannes a americanos relutantes obcecados com o recente sucesso de O Exorcista, para o produtor Alfredo Leone só havia como caminho uma hipótese: alterar o filme de forma a servir as necessidades dos compradores. Sem ter poder de decisão, Mario Bava viu a sua obra prima ser esquartejada e re-escrita, re-montada segundo critérios questionáveis, misturando algumas das suas sublimes imagens com cenas novas de possessão demoníaca filmadas pelo próprio produtor. Aquele que é, indiscutivelmente, o melhor filme de Mário Bava acabou por ser distribuído em 1974 na sua nova versão, A Casa Do Exocismo, transformado num dos mais horríveis objectos cinematográficos alguma vez exibidos, capaz de dar vergonha alheia continuamente durante hora e meia e de arrancar gargalhadas condescendentes ao mais indiferente dos espectadores. É isto que sucede quando o poder de gerir arte cai nas mãos de merceeiros. Em Portugal, para os mais desatentos, isso também já se tem usado.

Mas voltemos a Lisa And The Devil, a versão boa, um filme que torna a necrofilia erótica e comovente mas que, apesar disso, não é um filme fácil. Um filme em que se esbate a linha que separa a realidade da fantasia até que ambas se tornam interdependentes e inseparáveis, juntando elementos de melodrama gótico com série B, captando e demonstrando a demência de um pesadelo com mais poesia e imaginação que qualquer outro filme. Um filme que existe finalmente em DVD na sua excelente versão original mas que, como a desculpa não cura a ferida, podia haver muita gente a conhecer e a estudar Mario Bava e não há. Um filme que pede ao espectador 100% de atenção, estado de alerta, criatividade de leitura, colaboração no argumento, auto-confiança para apreciar mesmo quando as coisas não são totalmente explicadas... Ou seja, também não era em Portugal que Bava e Leone iam encontrar distribuidores nem público.