quinta-feira, fevereiro 09, 2012

Ser ou não ser Madonna

Um verdadeiro alfabeto audiovisual: assim é o universo criativo de Madonna, prolongado, repensado e reinventado através do teledisco de Give Me All Your Luvin' — este texto foi publicado no Diário de Notícias (5 Fevereiro), com o título 'Aventuras de uma senhora católica'.

No seu novo teledisco, Give Me All Your Luvin’, Madonna divide-se em várias personagens, a primeira delas serenamente maternal, a empurrar um carrinho de bebé. Mais à frente, vêmo-la de relance com o bebé ao colo. No final, depois de compreendermos que se trata de um boneco, o bebé é literalmente lançado para fora da imagem. Tendo em conta que o teledisco integra figuras e objectos ligados ao futebol americano, o bebé “confunde-se”, assim, com a bola lançada na conclusão de uma jogada, facto reforçado pela legenda de fecho: “Touchdown!”.
Na sua ironia cruel, estes acontecimentos constituem apenas algumas das ambivalências (narrativas e simbólicas) que atravessam um objecto que devolve aos telediscos a sua dignidade espectacular e, mais do que isso, a sua função televisiva de pequeno e exuberante evento audiovisual. Acima de tudo, Madonna recoloca em cena um princípio fulcral de todo a sua démarche criativa. É, curiosamente, um princípio de não identificação: para ela, muito ao contrário do que dizem os lugares-comuns sobre a sua carreira, a aposta consiste sempre em discutir o suposto poder revelador das imagens. Como quem nos diz: “Não estou onde me vêem.” Ou ainda: “Não julguem que, porque me vêem e eu me exponho, sabem quem eu sou.”
Nesta perspectiva, Give Me All Your Luvin’, dirigido pelo colectivo francês MegaForce (Léo Berne, Charles Brisgand, Raphaël Rodriguez e Clément Gallet), constitui uma metódica reinvenção de várias memórias de Madonna. É, inevitavelmente, uma revisitação de imagens, incluindo, a abrir, a mulher fria e distante de Bad Girl (1992) e, na parte final do teledisco, a imitação de Marilyn Monroe, mais de um quarto de século depois do emblemático Material Girl (1985). Mas é, acima de tudo, um reencontro com temas profundamente enraizados em todos os seus registos, desde os telediscos aos filmes, passando pelos livros.
Em boa verdade, tudo isso se organiza sempre a partir de um mesmo ponto de fuga temático. A saber: as condições de afirmação de uma dimensão feminina que, ponto por ponto, vai desafiando todos os valores normativos do machismo clássico. Para baralhar um pouco mais a bondade dos espíritos, Madonna não está a cumprir uma agenda televisiva de “debates” ou “polémicas”, privilegiando antes a alegria feérica de um conceito de espectáculo de permanente desmontagem crítica dos seus próprios valores. Daí, sem dúvida, o retorno do crucifixo como elemento vital de uma das personagens de Give Me All Your Luvin’. Aliás, é interessante verificar que, em algumas das suas recentes aparições públicas (incluindo o show de Jay Leno e a apresentação da sua participação no Super Bowl), Madonna tem recuperado a cruz como elemento forte do seu guarda-roupa: é um símbolo universal e uma derivação íntima do seu nome. Porque, nas aventuras com imagens, há nomes que são um destino.