domingo, fevereiro 19, 2012
O renascimento, segundo Martynov
Três obras do compositor russo Vladimir Martynov, no novo disco do Kronos Quartet. A edição surge no catálogo da Nonesuch Records.
Por muito que os regimes autoritários tentem controlar a produção artística, conduzindo-a segundo um quadro de propaganda ou formatação ideológica, as sementes de fuga (e revolução) acabam por nascer mesmo no epicentro da velha ordem. E foi em plena Dom Kompozitortov, uma grande residência para músicos no centro de Moscovo, que Vladimir Martynov (n. 1946) descobriu todo um primeiro universo de referencias que, desde cedo, o colocaram frente a um vasto horizonte de possibilidades. O seu pai era musicólogo, biógrafo de figuras como Glinka ou Shostakovich. Entre o que escutava em casa e nas demais “bibliotecas” musicais do edifício onde residia, Martynov descobria todo um universo sinfónico de Haydn a Mahler, bem como os novos caminhos da música contemporânea, de Pérotin a Stockhausen. Participou em excursões de recolha de música folk, tocou num ensemble de música antiga, mais tarda experimentou electrónicas no estúdio do Museu Scriabin e criou mesmo uma banda rock. Nos anos 70, confrontado com uma crise de valores da identidade cultural soviética, sentindo a emergência de novas ideias na contracultura local, afastou-se da composição e devotou o seu tempo ao estudo e preservação da tradição do canto tradicional ortodoxo russo. E ao regressar à escrita, nos anos 90, propôs linhas que definem um renascimento de ideias e práticas.
A nova música de Martynov expressava por um lado a assimilação de todo um legado que entretanto estudara com profundidade, mas por outro revelava uma forma muito pessoal de abordar as visões lançadas pelos minimalistas norte-americanos, nomeadamente Terry Riley. Steve Reich e Philip Glass. A sua música encara a repetição como algo que traz uma ordem metafísica aos sons, criando lógicas circulares que dispensam a ideia de início e fim. Como nos explica o belíssimo texto de Greg Dublinsky no booklet desta edição, Martynov tem por objetivo “a criação de uma música que mantenha esta pose de arrebatamento contemplativo por tanto tempo quanto possível: a música começa onde a pessoa acaba.”
Nome pouco representado nas discografias ocidentais, Martynov é a figura central do novo disco do Kronos Quartet. O disco tem como peça central Der Aschbend (der 2006), elegia pela memória do pai do compositor onde dois mundos dialogam, da sugestão, pela repetição, de uma respiração lenta e difícil e, depois, da aproximação a heranças mahlerianas desenhando-se um quadro que reflete sobre a morte. O alinhamento inclui ainda o belíssimo The Beatitudes (de 1998, revisto para o Kronos Quartet em 2006), outra expressão evidente de integração de elementos repetitivos numa linguagem pessoal (carregada de profunda melancolia) e o Schubert-Quintet, onde ao Kronos Quartet se junta o violoncelo de Joan Jeanrenaud.