1. Lembremos, sem hesitação: todas as listas de melhores (filmes, discos, livros, etc.) são legítimas e interessantes. E é uma banalidade pueril encará-las em nome de uma qualquer justiça. Que os "meus" filmes faltem na "tua" lista (ou o contrário), eis o que é normal e salutar.
2. Apesar disso (ou precisamente por causa disso), qualquer lista possui um inevitável valor sintomático. Que é como quem diz: de forma mais ou menos consciente, traduz uma visão do continente cinematográfico e, no limite, uma visão do próprio mundo.
3. A lista dos "20 melhores filmes do século XXI", agora divulgado pelo MSN/cinema, merece tanto mais atenção quanto traz uma respeitável chancela. A saber: "Este conteúdo foi produzido por alunos da cadeira de Comunicação Digital do curso de Comunicação Social da Universidade Católica Portuguesa, ao abrigo do protocolo entre a Universidade e o MSN Portugal."
4. É uma lista que se limita a si própria pela dominação anglo-saxónica das suas opções: A Rede Social, Kill Bill, The Departed, etc. Mesmo, insisto, não discutindo os fundamentos das escolhas, na prática assistimos a uma quase total marginalização de tudo o que não tenha alguma chancela (de produção ou difusão) da grande máquina de Hollywood.
5. Insisto também: não se trata de demonizar o cinema americano (aliás, em termos meramente subjectivos, não posso deixar de referir que sou um militante admirador da energia criativa da produção made in USA, em qualquer época). Trata-se, isso sim, de verificar que as propostas avançadas fazem eco do americano-centrismo com que, todos os dias, sobretudo nas televisões, é descrito, noticiado e (des)valorizado o mundo do cinema.
6. Na prática, isto significa que a lista apresentada dispensa qualquer atenção a muitas áreas da produção internacional, incluindo Portugal (ex.: Oliveira, Costa, Canijo), Espanha (Almodóvar, Icíar Bollaín), França (Godard, Rivette, Téchiné, Desplechin), Itália (Bellocchio, Moretti, Bertolucci), Alemanha (Wenders, Haneke), Suécia (Bergman), Dinamarca (Lars von Trier), Canadá (Cronenberg), Rússia (Sokurov), Argentina (Lucrecia Martel), China/Hong Kong/Taiwan (Wong Kar-wai, Ang Lee), etc., etc., etc.
7. Não estamos a falar, entenda-se, de filmes e autores inacessíveis — todos os nomes citados tiveram pelo menos um título estreado nas salas portuguesas no período em questão. O que está em causa é, por isso, a redução do universo cinematográfico à parcela que, por razões conjunturais de mercado, tem garantida maior visibilidade.
8. Significativamente, a maior parte dos textos de apresentação dos filmes escolhidos evoca a sua performance de bilheteira (em dólares). Exemplo: "'Este País Não É Para Velhos' foi igualmente um enorme sucesso monetário, pois tinha um orçamento avaliado em 25 milhões de dólares e conseguiu perfazer em todo o mundo uns aproximados 172 milhões de dólares." Para além da fraquíssima qualidade de escrita, assim se reforça o mais lamentável lugar-comum mediático (sobretudo televisivo) que passou a acompanhar a maior parte dos filmes: o de menosprezar as suas singularidades de expressão e linguagem para os reduzir a meros objectos sancionados pelos circuitos económicos.
9. Inevitavelmente, este é um discurso de chocante alheamento do património histórico do cinema. Assim, o cinema francês é, de facto, citado através de O Artista, suscitando esta lamentável apreciação: "O cinema francês tem cada vez mostrado mais cartas do seu baralho de sucesso, podendo vir a tornar-se numa das maiores e mais bem sucedidas potências cinematográficas de sempre." Baralho de sucesso?... Podendo vir a tornar-se... COMO? E... Méliès? Vigo? Renoir? Cocteau? Guitry? Ophuls? Bresson? Resnais? Rouch? Na prática, o simplismo de abordagens deste género consegue a proeza pouco invejável de, em duas linhas, rasurar um século de história.