Seguindo um hábito que 2011 trouxe ao Sound + Vision abrimos, com a chegada de novo mês, um novo ciclo temático. Celebrando os 75 anos de Philip Glass, que se assinalam a 31 de Janeiro, dedicamos assim uma particular atenção a um dos compositores mais admirados pelos dois autores deste blogue. E antes de passarmos em revista alguns dos seus discos, filmes, livros, pensamentos, deixamos hoje uma visão panorâmica sobre a sua vida e obra. Trata-se de uma versão editada de um texto que, na origem publicado no DN para assinalar o seu 70º aniversário foi depois adaptado e apresentado no prefácio da edição portuguesa de Música de Philip Glass, livro que a Quasi lançou em 2007. Hoje, em Linz, na Áustria, a Bruckner Orchester Linz assinala também o início das celebrações do 75º aniversário de Philip Glass com a estreia mundial da sua Sinfonia Nº 9.
Há quase 30 anos, numa entrevista televisiva, Philip Glass explicava, muito à sua maneira, que público (ou, antes, que soma de públicos) escutava a sua música. Havia quem dela gostasse por ser clássica. E quem apreciasse, sobretudo, o facto de não ser clássica. Muitos eram os que nela encontravam familiaridade por ser pop. E quem a elogiasse, precisamente por não ser pop. Os paradoxos eram, na verdade, apenas aparentes. E enunciados porque, de alguma forma, alguém tentou arrumar novos conceitos são velhas noções de fronteira. Na verdade, Philip Glass é expressão de uma vida e arte que transcendem a clássica separação entre a “alta” e a “baixa” cultura. A sua obra é essencialmente dominada por óperas, sinfonias e peças para teclados. Mas também marcada por fluente relação com o cinema e mesmo a canção popular. Explorador de novas tecnologias e formas, mas também frequente cliente de velhos instrumentos e formas vocais. Sem preconceitos de classe, Glass é um homem do seu tempo. E, mesmo mais apreciado entre os cultores da pop e cinéfilos que nos meandros da música erudita, não deixa de ser reconhecido como um dos mais importantes e influentes compositores da segunda metade do século XX.
Baltimore, 1949. O pequeno Philip, com 12 anos, ajuda o pai na loja de discos, todas as semanas escutando as novidades, acima de tudo, as que não vendem. O pai Glass faz questão de trazer para casa os 78 rotações que ninguém compra, tentando perceber porque são preteridos, tentando aprender, assim, a gerir com mais cautela a próxima encomenda. Um dia trouxe para casa uma sonata para violoncelo de Shostakovitch que ninguém quis. E tantas vezes a escutou, tentando descobrir o que estaria “errado” com aquela música, que acabou por adorá-la. O mesmo acontecendo ao filho, Philip, que já estudava flauta desde os oito anos e que, nestas sessões caseiras com os rejeitados da loja, descobriu, além de Shostakovitch, obras de Hindemith, Bartók, Debussy, Webern, Berg, quartetos de corda de Beethoven ou trios para piano de Schubert... Músicas que ouviu ao mesmo tempo que acompanhava, como tantos outros teenagers americanos, uma progressivamente mais intensa movimentação nas esferas da música popular, que culminaria com a explosão rock’n’roll com Elvis Presley, poucos anos depois.
Por essa altura, Philip estudava já matemática e filosofia, assim como a inseparável música, na Universidade de Chicago, em pouco tempo acabando como distinto aluno (premiado) na Julliard School of Music. Poucos imaginando, então, que o rapaz com gostos invulgares entre os amigos acabaria anos mais tarde aplaudido como um dos mais importantes compositores da segunda metade do século XX. Reconhecido sobretudo pelo determinante papel na renovação dos hábitos (de criação e consumo) de teatro musical (pode ler-se ópera) e pela evidente personalidade vincada de uma música inicialmente austera nas formas e elementos, nascida num tempo de partilha de referências, técnicas, palcos e filosofias com figuras como as de La Monte Young, Terry Riley e, sobretudo, Steve Reich, valendo-lhe tal etapa a sua identificação como um dos quatro pilares do minimalismo norte-americano, um dos mais marcantes e influentes movimentos musicais da segunda metade do século XX, com repercussões não só ao nível da música de arte, como nas próprias esferas da cultura popular.
Philip Glass, de resto, apesar de ter já composto mais de 20 óperas, oito sinfonias, oito concertos, inúmeras peças para instrumentos solistas e ensemble, entre outras, sempre foi mais aclamado e amado entre os músicos e públicos pop(ulares) que nas esferas da música clássica, onde frequentemente é alvo de críticas menos entusiasmadas. Ao longo da sua extensa carreira colaborou com inúmeras figuras pop como David Bowie (de cujos álbuns Low e Heroes fez nascer duas sinfonias, respectivamente as suas primeira e quarta), Aphex Twin (para quem assinou arranjos de Icct Hedral), S-Express (para quem remisturou Hey Music Lover), Natalie Merchant, Suzanne Vega, Mick Jagger, Ute Lemper (para todos estes tendo assinado canções), Marisa Monte ou Pierce Turner (a quem diversas vezes cedeu arranjos). Uma vivência pop com paroxismo no magistral Songs From Liquid Days (1986), ciclo de canções no qual participaram, entre outros, David Byrne, Laurie Anderson ou Paul Simon. Philip Glass foi citado em vários episódios dos Simpsons. Parodiado em South Park e, inclusivamente, no Contra Informação português (por ocasião da estreia da ópera O Corvo Branco). A sua obra para palco (ópera, teatro e bailado), para concerto ou cinema - e são inúmeras as bandas sonoras que assinou, três delas nomeadas para Óscares da Academia (Kundun de Martin Scorsese, The Hours de Stephen Daldry ou Notes On A Scandal, de Richard Eyre) – definiu uma multidão de descendências, que encontramos desde John Adams ou Michael Nyman a uma verdadeira multidão de compositores-à-hora ao serviço do mundo do cinema e não menos artistas e bandas pop/rock.
Depois de uma etapa inicial de aprendizagem (e primeiras composições, hoje renegadas), na qual a música de americanos como Aaron Copland, Charles Ives ou William Schuman representou uma primeira esfera de referências para o jovem estudante em Chicago e, mais tarde, na Julliard e, de uma segunda fase de estudos, entre 1960 e 65, primeiro com Darius Milhaud e, depois, Nadia Boulanger (com quem analisou, em Paris, obras de Mozart, Bach e Beethoven), Philip Glass encontrou onde menos esperava as sementes de mudança que nele fizeram aflorar uma nova personalidade musical. Em Paris, mais que nos Domaines Musicales de Pierre Boulez, era no teatro e cinema (sobretudo com Godard e Truffaut) que colhia novos estímulos, aprofundados depois de conhecer Ravi Shankar, com quem co-assinou, em 1966, a banda sonora de Chapaqua, filme de culto de Conrad Rooks. Partiu para a Índia, em busca de respostas a novas questões, a noção de ritmo aí bebida desordenando toda uma ordem musical até então apreendida. Foi também na Índia que conheceu o 14º Dalai Lama, aí nascendo uma franca identificação com a causa tibetana que o levaria a ser, em 1987, um dos fundadores da Tibetan House e, ainda hoje, regular organizador e participante de concertos de angariação de fundos.
De regresso a Paris, uma primeira composição, de formas mais austeras, ditada pela protagonista percepção do ritmo, surgiu para ilustrar uma peça teatral de Beckett. De uma só machadada abria não só espaço a uma nova demanda estética (da qual nasceria uma genética que, mesmo hoje por vezes distante, ainda coordena a sua linguagem), assim como uma fluente relação com os universos do teatro. Na verdade, quando hoje se pergunta a Philip Glass se faz música minimalista, responde que em tempos assim foi, mas que agora cria, sobretudo, música para teatro.
Nova Iorque acolheu-o de volta, primeiros espaços de vida pública então oferecidos por museus e galerias, fechado que estava o circuito das salas de concerto às suas músicas e às de outros contemporâneos. Sem um cêntimo para desenvolver projectos (todas as fundações e mecenas de referência recusaram as suas propostas em finais de 60), trabalhou como canalizador, taxista, teve uma empresa de mudanças com Steve Reich, foi assistente do escultor Richard Serra. Era um entre “uma geração de compositores em revolta aberta ao mundo académico”, como afirma no livro Talking Music, de William Duckworth.
O Philip Glass Ensemble nos anos 70 |
'Analog' (2007) |
Em tempo de assinalar o seu 75º aniversário opta por uma intensa agenda de trabalho. Em 2007, quando celebrou os 70 anos, Philip Glass fez 70 anos não o fez com programações especiais. Andou antes na estrada, em mais uma digressão, em mãos tinha o trabalho na ópera Appomatox (baseada na guerra civil americana), em duas novas sinfonias, duas bandas sonoras (para The Inner Life Of Martin Frost, de Paul Auster e Cassandra’s Dreams de Woody Allen), um novo ciclo de Études para piano, um novo concerto para violino e orquestra (de subtítulo The American Four Seasons) e ainda o projecto Book of Longing, baseado na poesia de Leonard Cohen. 2012 acolhe-o com... trabalho. Por palcos em várias latitudes estarão este mês em cena óperas como Orphée (Norfolk), Les Enfants Terribles (Raleigh) e Galileu Galilei (Madison). Dallas escuta o Concerto para Violino Nº 2 e em Glarus (Suíça) é tocada a Low Symphony. Em Baltimore Marin Alsop apresenta um programa especial criado com música de Glass. E Nova Iorque assinala a 31 deste mês o aniversário com um concerto especial dedicado ao compositor que junta a estreia local de Lamentate, de Arvo Part, à Sinfonia nº 9 do aniversariante. Esta tem, contudo, estreia hoje à noite, em Linz, na Áustria, pela orquestra local, uma das formações musicais que mais atenção tem dedicado à sua música. Para breve anuncia-se um álbum de remisturas, que tem em Beck um dos responsáveis.