domingo, janeiro 01, 2012

Polanski ou a música da farsa

Quatro actores excepcionais, excepcionalmente dirigidos por Roman Polanski. Ou como o cineasta de Chinatown reinveste o tema da respeitabilidade — este texto foi publicado no Diário de Notícias (28 Dezembro), com o título 'À beira do apocalipse moral'.

No universo de Roman Polanski, a respeitabilidade é um valor, no mínimo, duvidoso. No seu filme Chinatown (1974), Noah Cross, esse misto de cacique e mecenas social interpretado por John Huston, resume o problema com ironia: “Claro que sou uma pessoa respeitável. Sou velho. Os políticos, os edifícios antigos e as prostitutas, todos se tornam respeitáveis desde que durem o tempo suficiente.”
O Deus da Carnificina revisita esta máxima em tom de farsa, numa espécie de ópera bufa cuja musicalidade, para alem da notável banda sonora composta por Alexandre Desplat, está assegurada pelas palavras convulsivas da peça de Yasmina Reza. Os dois casais que discutem as atribulações protagonizadas pelos filhos (um deles feriu o outro, na escola) são mesmo o cúmulo da respeitabilidade. E tanto mais quanto estão empenhados em rasurar os efeitos de tão perturbante “violência”... Acontece que têm da natureza humana a mesma visão pueril dos políticos que, ciclicamente, nos alertam para os malefícios das imagens televisivas de “sexo e violência”: ignoram o facto de a sexualidade e as mais diversas tensões marcarem todas as formas dessa mesma natureza humana.
Em todo o caso, se tudo se reduzisse a um cristalino desencanto, O Deus da Carnificina seria apenas um contagiante sarcasmo. Mas Polanski é um admirável cineasta, quer dizer, um bicho narrativo que sabe que os filmes se ganham, não na proliferação de efeitos especiais, mas na metódica gestão do espaço e do tempo. E não é todos os dias que deparamos com um objecto assim, capaz de se mover nas margens do apocalipse moral sem sair de uma respeitável sala de estar (para além de breves vislumbres da casa de banho e do corredor com os elevadores). Cada imagem de Polanski é um buraco negro onde contemplamos as mentiras humanas e adivinhamos a violência de que somos feitos. Escusado será dizer que, na sua rigorosa transparência, não há filme mais pacifista.