Com J. Edgar, sobre o primeiro director do FBI, Clint Eastwood prossegue a sua viagem através do Sonho Americano (pesadelos incluídos) — este texto foi publicado no Diário de Notícias (26 Janeiro), com o título 'Histórias íntimas da Mãe América'.
O notável argumento de J. Edgar, assinado por Dustin Lance Black, obriga a acção a um fascinante ziguezague de mais de quatro décadas, colocando um problema eminentemente orgânico: como modelar o corpo do actor? Clint Eastwood escolheu a solução mais arriscada: não há mudança de actores e Leonardo DiCaprio compõe J. Edgar Hoover desde a juventude até à decadência final, o mesmo acontecendo, aliás, com Armie Hammer e Naomi Watts. Na prática, tal obriga os actores a usar uma evidente sobrecarga de caracterização. E a dúvida que fica é esta: como seria o filme se se tivesse optado por um mais discreto “envelhecimento” das personagens, evitando exibir o artifício de modo tão ostensivo?
Não é uma dúvida banal, uma vez que J. Edgar é menos um filme sobre os bastidores do FBI e mais, muitíssimo mais, uma saga intimista sobre a sexualidade recalcada do protagonista. Não se trata de “revelar” a homossexualidade de Hoover. Convenhamos que o olhar de Eastwood nada tem a ver com a estupidez militante da imprensa tablóide: o que ele filma é o apagamento da própria instância sexual, como se Hoover vivesse num universo alternativo em que a neutralidade que quer impor à sua vida sexual apenas encontra um espelho adequado no desejo de ordem (política e social) que o inspira.
Daí a subtil reconfiguração do Sonho Americano. Em J. Edgar, a utopia da ordem surge totalmente sustentada pelo poder radical das mulheres: a mãe (Judi Dench), sinalizando ao jovem Hoover a sexualidade que ele “não deve” assumir, e a secretária Helen Gandy (Watts) garantindo a inacessibilidade e, por fim, a destruição dos seus arquivos. Compreende-se a frieza temática a que Eastwood chegou: a Mãe América devora os seus filhos. Consequência cruel: zero nomeações para os Oscars.