terça-feira, janeiro 03, 2012

O Pingo Doce e a cultura

Jarra com Flores,
por Wybrand Hendriks (pintor holandês, 1744-1831)


I - A notícia do exílio económico-financeiro dos supermercados Pingo Doce merece uma sucinta reflexão, ligeiramente à margem.

II - Que se passou? Pois bem, a empresa Jerónimo Martins, dona dos referidos supermercados, anunciou que a sociedade Francisco Manuel dos Santos vendeu a totalidade do seu capital no grupo à subsidiária na Holanda, mantendo os direitos de voto.

III - Chovem, naturalmente, os protestos mais ou menos "políticos", denunciando o facto de as grandes empresas poderem lidar assim com o agravamento da carga fiscal, aplicando recursos e estratégias que, obviamente, não estão ao alcance do cidadão comum.

IV - É, por certo, uma perspectiva com fundamentos, a dessa denúncia. Mas é uma perspectiva que não se consegue libertar de uma representação banalmente moral(ista) dos circuitos económicos.

V - Faz-nos falta uma visão que, por uma vez, não tenha medo de usar a palavra cultura. Seria uma visão capaz de se libertar do discurso mais ou menos paternalista com que se pretende fazer crer, por exemplo, que a televisão faz "cultura" quando passa teatro ou ópera, mas que se limita a celebrar o "entretenimento" quando dá a ver o Big Brother e os seus derivados horrores. Seria, acima de tudo, uma visão com a coragem — política, hélas! — de apontar o mais óbvio: primeiro, que a vida cultural é a vida dos valores que temos (ou não temos) e do modo como, através deles, vivemos (e morremos); segundo, que o dinheiro pode arrastar valores totalmente cegos em relação aos interesses globais do Estado ou à simples sobrevivência social de cada indivíduo.

VI - Para termos essa visão, não nos é essencial que o Pingo Doce seja português, holandês ou apátrida. Em boa verdade, em tal visão, a legalidade desta venda (que não está em causa) seria sempre um detalhe incapaz de esgotar a tragédia cultural que está em jogo. Dito de outro modo: faz-nos falta uma classe política disponível para repensar a função social do dinheiro.

VII - Encore un effort...