A série britânica The Hour pode ser um bom pretexto para reflectirmos sobre a visão interior da televisão, das televisões — este texto foi publicado no Diário de Notícias (13 Janeiro), com o título 'Televisão sobre televisão'.
1. Está por fazer um estudo do absurdo televisivo. É o que se manifesta, por exemplo, quando nos intervalos de programas que as televisões gostam de classificar como “populares” proliferam anúncios a produtos de luxo. Se o seu valor não está ao alcance dos elementos da audiência, quem está a enganar quem?
2. Como toda a gente sabe, uma das razões que explica a proliferação de debates em televisão (muito ou pouco interessantes, não é isso que está em causa) é o seu custo reduzido face a programas de mais complexa produção ou maior fôlego espectacular. Consequência prática: os padrões sociais de discussão e análise são quase todos de natureza televisiva.
3. Socialmente, sempre circulou um agressivo subtexto contra o trabalho crítico sobre televisão. Um dos seus enunciados mais insistentes envolve uma pouco hábil chantagem moral: os críticos, supostamente viciados em formas mais ou menos esotéricas de narrativa, limitar-se-iam a denegrir a dimensão “popular” do próprio fenómeno televisivo. Vale a pena lembrar que, ciclicamente, algumas das visões mais subtis e também mais desencantadas da televisão têm vindo da área... televisiva. Um excelente exemplo, actualmente disponível no canal Fox Life, poderá ser a série The Hour (BBC), com Ben Wishaw, Dominic West e Romola Garai. Centrando-se no lançamento de um novo programa informativo, pela BBC (!), em 1956, em plena crise do Canal de Suez, The Hour expõe com admirável nitidez três pontos de vista que subscrevo com muito gosto: primeiro, que o sistema informativo de televisão decorre de formas específicas de encenação e teatralidade; segundo, que a relação desse sistema com a actualidade é determinada por valores ideológicos mais ou menos precisos; enfim, que há um star system dos modos de informar que nunca é estranho aos efeitos que se desencadeiam no espectador. Bem longe das reportagens autocomplacentes sobre os “famosos” da televisão, The Hour consegue fazer-nos ver (e acreditar) que essa mesma televisão não é feita por agentes intocáveis da “verdade”, mas sim por pessoas, tão banais ou geniais como quaisquer outras.