A Dívida, de John Madden, é um filme que, por razões temáticas, teria merecido algo mais do que a indiferença típica do mercado natalício — este título foi publicado no Diário de Notícias (2 Janeiro), com o título 'Como é que o cinema revê a história?'
Os balanços anuais da frequência das salas de cinema confirmam, nos mais diversos contextos, uma retracção regular das audiências. Em todo o caso, valerá a pena acrescentar que tal fenómeno não pode ser reduzido a índices meramente quantitativos. Desde as séries apoiadas num marketing devorador (Transformers, Harry Potter, Twilight) até às sequelas de animação (Carros, Kung Fu Panda), muitos sucessos dos nossos dias parecem enraizar-se numa sistemática exclusão da história e da espessura, enigmática ou perturbante, das suas memórias. Decididamente, este não é o tempo de Lawrence da Arábia (1962) e outros épicos feitos há mais ou menos meio século.
O fenómeno está longe de ser estritamente cinematográfico. É mesmo de raiz televisiva, já que as chamadas “reconstituições históricas” (expressão profundamente equívoca: reconstituir é sempre criar algo novo) constituem, no espaço imenso das séries, um regular recurso. Muitas vezes, a complexidade da história é mesmo “resolvida” através de uma grelha de leitura dominada pelo determinismo dramático e por algum tipo de gratificação moral. Veja-se os exemplos sintomáticos de Downton Abbey, celebrando a coexistência mítica das classes, ou Os Bórgia, parábola de banal anticlericalismo, antecipadamente decidida numa visão maniqueísta do “mal” e da “violência”.
Sem dúvida por isso, alguns filmes de temática especificamente histórica têm cada vez mais dificuldades em ser reconhecidos pelo grande público (em boa verdade, por vezes são também secundarizados no espaço jornalístico). No arranque do novo ano, vale a pena referir um desses filmes, estreado entre nós há cerca de um mês. É, a meu ver, uma obra menor, mas talvez merecesse uma reflexão mais alargada: A Dívida, o filme de John Madden, com Helen Mirren e Jessica Chastain, sobre um grupo de agentes da Mossad israelita envolvido na localização de um criminoso nazi.
Distribuído pela Miramax, o filme surgiu secundarizado pelo próprio mercado (desde logo porque o seu lançamento, nos EUA, foi perturbado pelas atribulações decorrentes da compra da Miramax, à Disney, pela Filmyard Holdings). Além do mais, o seu ziguezague narrativo (entre os anos 60 e 90) carece de consistência dramática, baralhando de forma pouco feliz a simples percepção dos acontecimentos. Ainda assim, há em A Dívida um princípio ético, e também uma forma de afectividade, que vale a pena sublinhar: nasce do confronto com o horror que a história pode envolver (neste caso, o Holocausto) e da necessidade de lidar com os seus factos, não apenas através das grandes “evidências” colectivas, mas também nunca menosprezando a singularidade das experiências individuais. É um bom princípio a ter em conta, sobretudo quando o mercado e muitos espectadores parecem dominados pelo triunfo de uma noção tecnocrática do cinema como mero repositório de “efeitos especiais”.