sábado, dezembro 03, 2011

Uma conversa com David Cronenberg (2/3)

Em Um Método Perigoso, o canadiano David Cronenberg coloca em cena um especialíssimo trio: Sigmund Freud (Viggo Mortensen), Carl Jung (Michael Fassbender), ambos envolvidos nos primórdios da psicanálise, e Sabina Spielrein (Keira Knightley), uma das sua primeiras pacientes [foto: Cronenberg + Mortensen]. A conversa que aqui se reproduz, realizada a 6 de Novembro, durante o Estoril & Lisbon Film Festival, teve Um Método Perigoso como pretexto imediato, acabando por desembocar em Cosmopolis, filme com Robert Pattinson, baseado no romance de Don DeLillo, actualmente em fase de montagem — esta transcrição, em bruto, serviu de base a uma entrevista publicada no Diário de Notícias (29 de Novembro), com o título 'David Cronenberg no labirinto da psicanálise'.

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Quer isso dizer que essa noção de pulsão de morte tem raízes femininas?
Sabina era uma mulher com uma formação cultural e intelectual idêntica à de Freud ou Jung...
Nesse aspecto, podemos dizer que seria, na época, uma mulher muito especial.
Sem dúvida, porque as mulheres não recebiam, ou não eram encorajadas a receber, a mesma educação dos homens. Em qualquer caso, não eram de modo nenhum encorajadas a exprimir abertamente a sua sexualidade. Eram deusas colocadas num pedestal para serem adoradas, não para exprimir a sua sexualidade.
Daí a “novidade” das relações de Sabina com Freud e Jung.
Claro que Freud e Jung tinham outras pacientes. Além do mais, eram casados, tinham filhos... mas isso não bastava para que acedessem à perspectiva feminina. No fundo, Sabina fez-lhes ver como, num acto sexual, uma mulher, de certa maneira, dissolve o seu ego. Ora, se se trata apenas de obter prazer, não devia haver um problema... mas há um problema.
Aceita que se diga que, nos seus filmes, esse problema é apresentado, sobretudo, pelas personagens masculinas?
Não creio, desde logo porque Sabina é uma figura muito importante neste filme. Lembro-me que quando estava a escrever um dos primeiros filmes, Rabid (1977), a história não funcionava, até que decidi transformar a personagem principal numa mulher. O mesmo aconteceu, aliás, em eXistenZ (1999): a personagem interpretada por Jennifer Jason Leigh começou por ser um homem... Claro que a minha perspectiva é masculina, mas há momentos em que, por razões dramáticas, é importante mudar para uma visão feminina.
E como é que isso se reflecte na relação com os actores? Sente que encontra muitos elementos do filme através dos actores? E actrizes?
Sim, absolutamente. E creio que é por isso que os actores gostam de trabalhar comigo: sabem que lhes entrego uma grande fatia de responsabilidade. Quando fez Spider (2002) comigo, Ralph Fiennes disse que tinha sido o filme em que tinha sido menos dirigido, mas também uma maravilhosa experiência de representação. É por isso que não utilizo storyboards: não consigo decidir como filmar uma cena, que objectiva utilizar, que enquadramento fazer, etc., antes de ter o actor. Para quê contratar um excelente actor e, depois, movê-lo como se fosse uma peça de mobiliário? Quero que o actor colabore, não apenas na rodagem, mas antes. Quero que ele traga a sua inteligência e a sua pesquisa. Aliás, espero isso dele. E a minha experiência diz-me que o actor gosta dessa expectativa e também dessa exigência.
Há alguma relação entre esse modo de trabalho e a tradição do Método?
Não, não creio. E, de facto, nunca trabalhei com um actor do Método. Creio que o actor do Método tem tendência a ser muito egoísta, a ponto de, quando se é uma grande estrela como Marlon Brando, se obrigar tudo e todos a servir as suas próprias necessidades. Gosto que os actores não tragam as suas necessidades para as filmagens. No fundo, apenas preciso que o actor... represente, não que exija que os outros façam isto ou aquilo, que o tratem pelo nome da personagem, etc. Tudo isso acaba por se transformar num jogo de poder entre actores, para definir quem domina quem.
Quais são, então, as raízes do seu trabalho com os actores?
Provavelmente, têm a ver com a cultura canadiana que valoriza mais a colaboração do que, de um modo geral, a cultura americana. Somos um país que tem segurança segurança social, que tem assistência na saúde, enquanto a agressividade capitalista dos EUA faz com que seja “cada um por si”.
Nessa perspectiva, podemos dizer que há uma tradição cinematográfica canadiana?
A velha tradição canadiana vem do National Film Board e dos seus documentários. De acordo com essa tradição, se se fazia um filme de ficção, então devia estar tão próximo quanto possível de um documentário. Daí que os nossos primeiros filmes de ficção fossem, sobretudo, sobre agricultores ou pescadores e as dificuldades das suas vidas. Quando fiz o meu primeiro filme, Shivers (1975), foi considerado chocante porque era um filme de terror, inventava coisas que não existiam...
Não era, na altura, um típico filme canadiano.
Não era, de facto. Mais tarde, tornou-se muito comum um jovem cineasta começar a sua carreira fazendo um pequeno filme de terror. Era relativamente fácil conseguir financiamento e, digamos, o género tolerava bem a inexperiência: mesmo quando o filme não era tecnicamente muito bom, o simples facto de ter algumas boas ideias era suficiente para que os fãs do terror o aceitassem. Em boa verdade, Coppola começou por fazer filmes de terror de baixo orçamento e cineastas como Kubrick ou Scorsese também começaram por pequenos filmes de género.
[continua]