quarta-feira, dezembro 28, 2011

'Pocahontas' (1995),
por Flávio Gonçalves


Este mês pedimos a uma série de amigos que nos falassem do “seu” filme da Disney. Hoje recordamos Pocahontas, longa-metragem de 1995 que aqui é evocada por Flávio Gonçalves do DN, colaborador da revista Premiere e autor do blogue O Sétimo Continente. Um muito obrigado ao Flávio pela colaboração.

400 anos após o nascimento da princesa índia Matoaka (apelidada de Pocahontas), os estúdios de animação Disney lançavam um filme romantizado (e não exactamente bem apurado, como o Roy Disney, neto de Walt, queria então fazer crer) sobre a célebre filha do governador das tribos do litoral daquele que é hoje reconhecido como o estado Virgínia. Seja entendido como filme biográfico ou não (provavelmente The New World, de Terrence Malick, lançado dez anos depois, cumpre com mais fidelidade os critérios do género), a Disney acabava de criar um novo mundo.

Não sei precisar bem quando entrei em Pocahontas (se no final de 1995, aquando a sua estreia em Portugal, ou mais tarde) mas lembro-me, isso sim, que foi o primeiro filme que vi em sala (numa visita de estudo da pré-primária). Naturalmente, revi-o, mais tarde, mais vezes em VHS (como fazia, sem cessar, com quase todas os clássicos da Disney), emocionando-me, continuadamente, com as cenas finais. Havia (há) qualquer coisa de perturbante que tem a ver, fundamentalmente, com o sentimento de perda da inocência e, sobretudo, de aceitação da perda.

É por isso, provavelmente, que considero que Pocahontas segue a linha do precedente O Rei Leão. Se no filme de 1994 o jovem Simba testemunhava a morte do pai e lidava o resto da vida com essa perda, em Pocahontas a princesa confronta-se com a sua inevitável separação com John Smith. O que há, no entanto, de diferente é que, em O Rei Leão, o protagonista é bem-sucedido ao subir ao trono real (ficando ligado, com esse gesto, ao seu falecido pai) e, em Pocahontas, a princesa debate-se com a perda (irreversível) no final. É este desencanto e este confronto com o facto de, por vezes, não haver finais ideais (ou “felizes”) que aproxima a Disney, pela primeira vez, a outras possibilidades menos felizes da vida.

Mas não é só nisso que Pocahontas se liga ao meu confesso favorito da Disney. Ambos transparecem algo de muito particular e fascinante: a relação espiritual das personagens com a natureza (melhor será dizer: com aquilo que vive e existe). E não é apenas porque cada um tem os seus rituais religiosos (seja porque em O Rei Leão exista uma espécie de baptizado nas cenas inicial e final ou porque em Pocahontas a tribo tenha as suas tradições e orações). Se em O Rei Leão se exigia do protagonista o respeito pela harmonia do “círculo da vida”, em Pocahontas aprendemos, acompanhando John Smith, a lidar de modo diferente com aquilo que é vivo – e diferente.

A cena (aqui) mais edificativa disto que falo é a que acompanha a extraordinária canção Colors of the Wind, composta por Alan Menken (vencedora, inclusivamente, do Óscar para melhor canção original). Nela, Pocahontas canta um hino ao que foi designado de animismo, respeitando a harmonia cósmica da natureza (vide os versos: You think you own whatever land you land on / The Earth is just a dead thing you can claim / But I know every rock and tree and creature / Has a life, has a spirit, has a name, e também: The rainstorm and the river are my brothers / The heron and the otter are my friends /And we are all connected to each other / In a circle, in a hoop that never ends), em momentos que saltam da narrativa e que são preenchidos por uma alucinante e colorida energia (Pocahontas e John Smith voam, nadam, saltam de uma cascata com espectros de animais e correm, rebolam e dançam na floresta…)

Esta dimensão espiritual (ainda que não autoritária, no sentido relacionado aos ditames de algumas religiões), explorada a um nível gráfico e dramático como quase nenhum outro filme da Disney conseguiu atingir, demonstra, na minha perspectiva, a obra-prima que é Pocahontas e como esta foi, e continua a ser, muitas vezes esquecida ou subvalorizada. Não obstante, o mistério desta obra (What's around the riverbend?, questiona e canta ela, para si e para nós) perdura com o mesmo encanto, conseguindo por isso ultrapassar a espessa barreira do tempo e da sua passagem.