Jean-Pierre e Luc Dardenne distinguem-se pela coerência própria de um olhar realista que recusa, ponto por ponto, qualquer estética espontaneísta de raiz televisiva: O Miúdo da Bicicleta é mais um momento exemplar da sua trajectória — este texto foi publicado no Diário de Notícias (22 Dezembro), com o título 'A magnífica obsessão de Cyril'.
Vemos O Miúdo da Bicicleta e sentimos, uma vez mais, a singularidade das imagens dos irmãos Dardenne. Um pouco como quando deparamos com um fotograma de Hitchcock e, de imediato, reconhecemos a irredutibilidade da sua visão. Não é um mero efeito de assinatura. Não estamos perante criadores banais que, na ausência de ideias, apenas conseguem inscrever na tela a marca de um “estilo”. Nada disso. É algo que nasce do carinho e da proximidade (física e emocional) com que lidam com os seus vulneráveis heróis.
O modelo de tal dispositivo de mise en scène encontra-se, em estado cristalino, em Rosetta (1999): a câmara segue a desamparada protagonista como quem a quer agarrar antes que se perca nas armadilhas do destino. Literalmente: a câmara dos Dardenne mantêm-se colada aos ombros de Rosetta, dir-se-ia ansiando por chegar, algures, antes que ela se despenhe na sua vertigem. No caso de O Miúdo da Bicicleta, o pequeno Cyril (o extraordinário Thomas Doret) parece só existir em função da sua bicicleta e no lugar onde estiver a sua bicicleta. É uma magnífica obsessão que os Dardenne filmam como uma desesperada demanda edipiana: da figura distante do pai e também de um sonhado espaço familiar.
Reencontramos, assim, a energia de um cinema fiel a um programa realista que, no cinema europeu contemporâneo, corresponde a uma espécie de inexpugnável fortaleza criativa. E será bom não esquecermos que a intensidade das imagens dos Dardenne não esgota as maravilhas do seu universo. O realismo é indissociável dos sons que eles recolhem na agitação urbana, revalorizando o grão das vozes e a emoção das palavras. Numa palavra, ensinando-nos a arte difícil (e tão mal tratada) da escuta.