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Como vemos os acontecimentos de um país tão distante como a Coreia do Norte? E, no espaço televisivo, como é que as suas notícias se cruzam com as outras notícias? — esta crónica de televisão foi publicada no Diário de Notícias (23 Dezembro).
As imagens provenientes da Coreia do Norte, dando conta da morte do líder Kim Jong-il, constituem um cristalino exemplo da lógica de propaganda de uma ditadura. De um país que sabemos marcado pela repressão e pela miséria da esmagadora maioria da população, recebemos, assim, uma perspectiva propriamente religiosa, remetendo o defunto para uma transcendência a que, “idealmente”, todos deveríamos reconhecer um carácter absoluto e indesmentível.
Vale a pena, por exemplo, confrontar as imagens daqueles que choram para as câmaras com a reportagem de Sue Lloyd-Roberts (disponível no site da BBC), realizada, em 2010, no âmbito de uma visita oficial à Coreia do Norte e recentemente distinguida com um Emmy do jornalismo televisivo. Desde as aldeias que não foi possível visitar até à simples interdição de filmar um cidadão que acabou de fazer compras num mercado (em cujo interior as câmaras também não podem entrar), passando pelas perguntas a que alguns interlocutores oficiais recusam responder, Lloyd-Roberts confronta-nos com um país de “fantasia” que, no final, lhe suscita uma desencantada reflexão: “Creio que aquilo que mais me surpreendeu foi o facto de eles conseguirem acreditar que nós acreditaríamos que aquilo que nos mostraram era a realidade.”
Eis um bom princípio jornalístico: não ceder ao carácter pitoresco das imagens (e sons) que é possível recolher face a qualquer acontecimento, não as transformando também em “apanhados” mais ou menos sarcásticos. Acima de tudo: pensar com as imagens, em vez de as difundir como se nelas residisse a prova linear de uma verdade definitiva.
Daí o perturbante paradoxo: deparando com as imagens dos coreanos a chorar, não podemos deixar de sentir que a sua carga de verdade (seja ela qual for) está contaminada por uma matriz informativa que trata, com a mesma evidência, a morte de Kim Jong-il, um acidente numa auto-estrada ou a mais recente lengalenga de um treinador de futebol a proclamar que “a equipa trabalhou muito”. Dito de outro modo: as imagens codificadas de uma ditadura poderiam ser um bom pretexto para reflectirmos sobre as contradições do jornalismo televisivo em democracia.
>>> Textos do New York Times sobre Kim Jong-il.